e25 “As portuguesas ainda não conseguiram a cidadania plena”
Manuela Góis, em uma manifestação contra a precariedade no trabalho. Foto: Mario Queiroz /IPS
Lisboa, Portugal, 8/3/2012 – A conquista de uma série de direitos fundamentais tem sido para as mulheres de Portugal uma questão árdua e lenta, uma luta que ainda continua, apesar de passados 37 anos desde a instauração da democracia, disse à IPS a destacada feminista Manuela Góis. Em 25 de abril de 1974, em menos de 24 horas, 144 capitães democratas do exército português puseram fim a um regime corporativista e católico, que governava o país desde 1926.
A chamada Revolução dos Cravos decretou o fim do arcaico império português que se havia fundado na África em 1415 e na Ásia em 1498. Porém, a revolução de mentalidades e tradições arraigadas é muito mais lenta, especialmente quanto à igualdade de gênero, explicou Góis ao analisar a situação das portuguesas por ocasião do Dia Internacional da Mulher.
Tenaz resistente à ditadura de “O Estado Novo”, de Antonio de Oliveira Salazar e Marcello das Neves Caetano, a vice-presidente da União de Mulheres Alternativa e Resposta (Umar), Manuela Góis, é uma das mais dedicadas defensoras dos direitos femininos neste país. A ativista reconhece o que foi conquistado em quase quatro décadas de democracia, mas destaca que as mulheres “ainda devem percorrer um longo caminho para obter a cidadania plena”.
Góis, que nasceu em Lisboa em 1951, é professora de economia no ensino secundário, autora de vários artigos e coautora do livro Roteiros Feministas: Lisboa também é das mulheres. Esta obra “fazia falta, já que não havia um olhar feminista sobre Lisboa e porque a história tradicional converte em invisível o papel das mulheres”, afirmou.
IPS: Quais progressos destaca para as mulheres desde a Revolução dos Cravos?
Manuela Góis: Nestes 37 anos de democracia, as mulheres conquistaram um conjunto de direitos fundamentais, como votar e serem candidatas em eleições legislativas, presidenciais e municipais. A lei da paridade para as eleições estabelece a cota de um terço, no mínimo, para as mulheres, que agora podem exercer profissões que antes da revolução de 1974 não podiam exercer sem autorização dos maridos, como serem magistradas, juízas, diplomatas ou comerciantes.
IPS: Também diminuiu o peso da Igreja Católica na vida das mulheres. O divórcio, e depois o aborto, uma longa batalha da Umar concluída apenas em 2007…
MG: Devido ao Concordato, assinado em 1940 entre o regime de Salazar-Caetano e o Vaticano, os casais unidos pela Igreja Católica não podiam se divorciar. Só havia este direito para os casados no civil. A revolução de 25 de abril deu a todos o direito ao divórcio. Atualmente, as mulheres em Portugal podem abortar livremente, com garantias de segurança e gratuitamente, até a décima semana de gestação.
IPS: Uma queixa frequente é a desigualdade nas remunerações trabalhistas. Esta não foi também uma conquista da revolução?
MG: De fato, se conquistou o direito de “salário igual para trabalho igual”, estipulado no Artigo 13 da Constituição da República. No entanto, ainda há setores que não aplicam este princípio constitucional da consagração do direito à igualdade de gêneros.
IPS: Quais outros êxitos da luta das mulheres merecem ser destacados por ocasião do Dia Internacional da Mulher?
MG: Existe uma lei sobre a violência doméstica que a considera crime público, a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Estas conquistas são causa e consequência das lutas das mulheres. Porém, ainda há muito a ser feito pela cidadania plena, pois as mulheres estão sub-representadas na esfera pública e a presença no setor privado ainda é muito insuficiente.
IPS: Por exemplo?
MG: As mulheres, apesar de representarem 59% nas profissões intelectuais e científicas, continuam sendo minoritárias nos quadros superiores, com presença de 32,5%. Por outro lado, representam 73% do total da mão de obra não qualificada. O direito à saúde sexual e reprodutiva, o acesso das lésbicas e das solteiras à procriação com assistência médica e o direito à adoção para todas as pessoas, independente de sua orientação sexual, são alguns exemplos dos direitos pendentes de cumprimento. No dia 26 de fevereiro, o parlamento vetou um projeto de lei do Bloco de Esquerda (BE), sobre a adoção por parte de casais homossexuais, o que é um retrocesso, ao colocar em xeque o princípio da igualdade entre todas as pessoas, e revela o conservadorismo da maioria dos partidos, incluído o Partido Comunista e alguns deputados socialistas. Apenas o Bloco e o Partido Ecologista Verde (PEV) votaram a favor. Há muitas famílias homossexuais que não poderão legalizar a situação existente.
IPS: Como situa Portugal em comparação com o resto da Europa?
MG: Em algumas áreas, as portuguesas, com relação a outras europeias, têm uma situação mais igualitária e, em outras, menos. Quanto ao aborto, o prazo para a interrupção da gravidez ainda é curto, a lei de violência doméstica, apesar de ter sido melhorada, deveria forçar o agressor a se afastar e não fazer com que a mulher mude de domicílio e de emprego. Na União Europeia, as mulheres ganham, em média, 17,5% menos do que os homens. Em Portugal, essa diferença hoje é de 21%. Com exceção do BE e do PEV, e com muitas limitações os socialistas, nenhum partido pratica a paridade, já que são estruturas patriarcais onde o domínio masculino é imenso. No movimento sindical, a presença feminina não é relevante, já que os sindicatos mantêm estruturas de domínio masculino, onde as mulheres são pouco representadas. Em 2011, a saúde e os salários foram os fatores que mais penalizaram as mulheres em Portugal. De acordo com o Fórum sobre a Igualdade de Gênero (inciativa da Unesco sobre igualdade de gênero e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio), Portugal aparece na posição 35, entre 135 países.
IPS: Então, a luta continua…
MG: Continuamos lutando pela igualdade de direitos, e ampliamos a batalha contra todas as opressões. Isto porque a identidade é intersetorial. Está plenamente associada ao gênero, etnia, classe, orientação sexual, capacidade física, nacionalidade, estatuto da imigração, religião e identidade. Assim, é questionável a heterossexualidade normativa associada ao binário sexo/gênero, colocando-a acima do específico da experiência das pessoas, que são submetidas a múltiplas formas de subordinação na sociedade e não apenas essa. Envolverde/IPS