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quarta-feira, 27 de março de 2013

Em fuga para manter os filhos

Há quatro anos, Júlia enfrenta um ex-marido e os governos de dois países. A Justiça determina que ela faça o que considera impensável: deixar os filhos viver em outro continente, com o pai


WALCYR CARRASCO

A MÃE Júlia Albuquerque com os dois filhos. Para ficar com eles, ela fugiu para outro país, escapou da Justiça num porta-malas e se muda regularmente (Foto:  Arquivo pessoal)
A MÃE
Júlia Albuquerque com os dois filhos. Para ficar com eles, 
ela fugiu para outro país, escapou da Justiça num porta-malas 
e se muda regularmente (Foto: Arquivo pessoal)
UMA VIDA CLANDESTINA
Júlia Albuquerque tem 39 anos e o corpo torneado pelos tempos em que participou da seleção brasileira de polo aquático. Há quatro anos, esconde-se com os filhos, M., de 13 anos, e B., de 10. Foge para evitar a execução de uma sentença da Justiça brasileira, segundo a qual os meninos devem ser devolvidos ao pai, Tommy Bless, na Noruega. É uma história repleta de lances rocambolescos. Inicialmente, o pai sequestrou os filhos no Brasil e os levou para a Noruega. Posteriormente, a mãe sequestrou os filhos de volta e os trouxe para o Brasil. Ela vive em fuga, para evitar a deportação dos filhos. Muda sempre de endereço. Eu a encontrei no apartamento de uma amiga, num bairro de classe média do Rio de Janeiro, onde vive atualmente.

Os dois quartos são ocupados pela proprietária e por sua filha. Júlia e os garotos dormem na sala, em colchões improvisados. Ela já planeja uma nova mudança. Sobrevive como corretora autônoma, embora, entre uma fuga e outra, nem sempre possa atender os clientes. Troca de celular com frequência, para evitar ser rastreada. Só retira dinheiro de caixas eletrônicos diferentes, apesar de usar o nome e o cartão de outra pessoa. Júlia é uma mulher bela, mas seu rosto evidencia as marcas da tensão. Em certo momento, o filho mais velho, um adolescente bonito, com um brinco na orelha, diz: “Eu queria ter uma rotina novamente”.

O romance que se transformou em trama policial iniciou-se em 1999, quando, depois de deixar a seleção de polo, Júlia viajou para a Noruega. Na cidade litorânea de Stavanger, conheceu Bless. Apaixonou-se. “Eu queria tanto ter um filho dele que chorava quando vinha a menstruação”, diz. Meses depois, descobriu que estava grávida. Em agosto, os apaixonados casaram-se no Brasil. Depois, voltaram à Noruega e lá também tornaram o casamento oficial. Bless ganhava bem como vendedor de aspiradores de pó numa loja de departamentos. Júlia passou por uma série de empregos: cuidou de idosos, foi caixa de supermercado e instrutora de natação. A relação começou a se deteriorar. Nesse momento da conversa, Júlia pede para os meninos saírem da sala. “Não quero falar mal do pai na frente deles”, diz.
“Bless começou a beber. Antes, dizia que eu era a mulher da vida dele. Então, passou a me atacar, me chamava de burra, a me diminuir de todo jeito.” Mesmo grávida do segundo filho, pediu a separação, oficializada na Justiça norueguesa. O casal continuou morando junto. Em abril de 2002, nasceu o segundo filho. Júlia e Bless retomaram o relacionamento durante algum tempo. Voltaram a se desentender, e Bless mudou-se. A tutela do menino mais novo foi concedida à mãe. A guarda do mais velho foi compartilhada.

Mesmo sem relação amorosa, o antigo casal ainda fazia planos em comum. Júlia convenceu o ex a se mudar para o Brasil. Registrou os meninos na embaixada brasileira, e eles ganharam dupla nacionalidade. Ela veio na frente com os meninos. Ele, meses depois, com visto de turista. “Ele não trouxe sequer um cartão de crédito. Hospedou-se no meu apartamento, e eu o sustentava”, afirma Júlia. Segundo ela, Bless saía muito à noite, frequentava boates de striptease e mantinha relacionamentos com prostitutas. “Uma vez, ele chegou sem um cordão de ouro que usava sempre. Tinha bebido tanto que não teve dinheiro para pagar a conta de um inferninho. Foi obrigado a deixar o cordão como garantia e tive de ir resgatar”, diz. As brigas aumentaram. “Outra vez, ele me pegou pelo pescoço na frente dos meninos”, afirma Júlia. Bless foi procurado por ÉPOCA para apresentar sua versão da história e chegou a agendar uma entrevista. Depois, por telefone, disse que preferia não tratar do tema publicamente. Seu advogado, Lucas Marques, também informou que prefere não se pronunciar sobre o caso.

O PAI Tommy Bless com os dois filhos, em imagem anterior a 2008. Ele ganhou  a guarda dos meninos em todas as instâncias da Justiça brasileira (Foto: Arquivo pessoal)
O PAI
Tommy Bless com os dois filhos, em imagem
anterior a 2008. Ele ganhou a guarda dos meninos
em todas as instâncias da Justiça brasileira
(Foto: Arquivo pessoal)
O PRIMEIRO SEQUESTRO – POR PARTE DO PAI
Júlia conta que, em dezembro de 2004, deixou Bless passar uns dias em Búzios com os filhos. Em segredo, ele conseguira passagens para a Noruega. No celular, ainda fingiu pedir instruções para o caminho. Na verdade, fazia o check-in. “Ainda lembro aquele dia”, diz o garoto mais novo, então com 6 anos. “Eu me agarrava às poltronas do aeroporto, gritava que não queria ir, que queria minha mãe. Meu pai garantiu que ela estava de acordo, e fui obrigado a embarcar.” Da Noruega, Bless ligou para Júlia e contou o que havia feito. Júlia discutiu. Ele parou de atender as ligações. Ela registrou um boletim de ocorrência. O delegado Lauro Américo informou que se tratava apenas de uma reclamação, que nenhum inquérito seria aberto. Por uma interpretação dos fatos, eles ainda eram casados diante da Justiça brasileira, e Bless não infringira lei nenhuma ao viajar com os filhos. O advogado que defende Júlia, Christiano Mourão, do escritório Mourão, Queiroz e Terra Advogados, discorda. “Não é possível entender como Bless conseguiu embarcar sozinho com as crianças. Já havia um acordo de guarda favorável à mãe”, diz.
Júlia pediu ajuda ao Itamaraty. Foi orientada a voltar à Noruega e a entrar, sem apoio algum do Brasil, com um pedido de guarda na Justiça norueguesa. Em 2005, Júlia partiu para lá em busca dos filhos. Ao chegar, descobriu que Bless entrara com um processo de disputa de guarda. Ela contestou, mas conseguiu apenas o direito de visita. O pai ficou com a tutela dos filhos. Numa das primeiras visitas após a decisão judicial, tiveram um desentendimento. “Foi uma discussão feia”, diz ela. Bless revidou: pediu à Justiça a suspensão das visitas, alegando que o contato com a mãe punha as crianças em risco de vida. “Não fui ouvida, nem minhas testemunhas”, afirma ela. Seus advogados, na época, recuperaram o direito de visitação, mas o episódio a deixou assustada. “Fiquei com medo de perder meus filhos para sempre.” E tomou a decisão que a levaria a um labirinto de decisões judiciais e à vida de fugitiva.


O SEGUNDO SEQUESTRO – POR PARTE DA MÃE
Júlia obteve autorização para uma pequena viagem com os meninos, dentro do território norueguês. Usando os passaportes noruegueses, secretamente, embarcou para a Alemanha. Acreditava que a vigilância do trânsito de menores entre países europeus seria mais branda. Deu certo. Para sair da Alemanha, usou os passaportes brasileiros dos meninos, que conseguira na embaixada. “Eu tremia de emoção. Na hora de passar pela migração, o oficial alemão estranhou a falta de carimbo de entrada nos passaportes”, diz ela. “Expliquei que eles tinham dupla nacionalidade. Quando ele nos deixou passar, chorei de emoção.”
De volta ao Brasil, ela retomou um ritmo de vida aparentemente normal. Foi morar com os filhos num condomínio de casas em Niterói, onde também vive sua mãe, Viviane Maciel. Júlia tornou-se vendedora numa joalheria e ganhava bem. Brigas telefônicas com Bless eram frequentes. Ela achou que não passaria disso.

Errou. Bless a acusou de sequestro para a Advocacia-Geral da União e pediu a devolução dos filhos. A AGU iniciou um processo contra Júlia. Bless também conseguiu ajuda oficial. Em 2008, quando o primeiro-ministro da Noruega, Jeans Stoltenberg, veio ao Brasil, pediu a solução do caso diretamente ao então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva.


Júlia afirma que não soube nada de toda essa movimentação. Não foi intimada. Uma noite, em 2009, levou um susto ao chegar a seu condomínio. “O porteiro deu um recado de minha mãe para eu entrar escondida”, diz.

“Havia um grupo com o oficial de justiça e policiais, para levar os meninos e embarcar para a Noruega.” Como não tinham ordem judicial para invadir a residência, eles a esperavam na porta. Júlia entrou pela casa da vizinha e atravessou um quintal protegido por um cão de guarda. Encontrou os meninos, escondidos por intervenção da avó, na edícula da casa. “Quando vi minha mãe, pedi socorro”, diz o filho menor. Fugiram os três no porta-malas do carro da vizinha.


A história de uma relação (Foto: reprodução/Revista ÉPOCA)














A LUTA CONTRA OS GOVERNOS
Júlia se escondeu, primeiro, na casa de um irmão. De lá, contratou advogados. Sua vida e a dos filhos passaram a ser regidas por decisões temporárias da Justiça. Quando conseguem uma suspensão da sentença, voltam a um dia a dia quase normal. Moram num apartamento, e os meninos fazem amigos. Quando a decisão cai, fogem novamente. Da última vez, há alguns meses, tiveram de abandonar os três cachorros e os dois gatos. “Gosto muito dos bichos, sinto muita saudade”, diz o garoto mais novo. Perdem roupas e brinquedos. Atualmente, estão escondidos. Até agora, Júlia foi derrotada em todas as instâncias. O Brasil é signatário da Convenção de Haia, tratado internacional segundo o qual a residência habitual das crianças define a guarda. Até o momento, a Justiça brasileira tem seguido o que determina o tratado. Outros conhecedores do tema têm opinião diferente. A advogada Fernanda Dal Moro afirma que a Constituição Federal tem poder superior à Convenção de Haia e que a permanência das crianças no Brasil também poderia ser amparada no Estatuto da Criança e do Adolescente. Fernanda, do escritório Tostes e Associados, atua no caso do menino americano Sean, cuja guarda foi disputada pelo pai biológico e pela avó materna, após a morte da mãe. O menino foi entregue ao pai em 2009. “A criança tem o direito de se expressar. Até a Convenção de Haia admite essa possibilidade. Mas nossos juízes são muito reticentes em ouvir os menores”, diz ela.

A mais recente decepção de Júlia foi uma vitória de Bless no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A sentença pode ser executada a qualquer momento. O advogado Mourão entrou com recurso, já que o menino mais velho foi ouvido judicialmente e declarou que quer permanecer no Brasil, com a mãe. No julgamento, o STJ não levou em consideração a opinião do menor. “A base de nossa defesa é o desejo do garoto de ficar e o sequestro inicial, feito pelo pai”, afirma Mourão. O ministro do STJ Napoleão Maia Filho foi o relator do recurso impetrado pelos advogados de Júlia, negado no final de 2012. Ele afirma não ter examinado fatos, e sim o caso como foi apresentado pela Justiça do Rio de Janeiro, na primeira instância – um caso de duas crianças sequestradas da Noruega para o Brasil.

a mensagem 773 caso extraordinário (Foto: reprodução/Revista ÉPOCA)
Júlia afirma não receber das autoridades brasileiras apoio semelhante ao que seu ex consegue na Noruega. “Se um dos progenitores retira uma criança ilegalmente da Noruega, ou a impede de voltar ao país, nossa autoridade central exige que ela volte, pelos termos da Convenção de Haia”, afirma a embaixadora da Noruega no Brasil, Aud Marit Wiig. O apoio a Bless é explícito: quando vem ao Brasil, ele usa um carro do consulado norueguês. Do lado de cá, não há nada parecido. A área responsável por sequestros internacionais de crianças na Secretaria de Direitos Humanos disse a ÉPOCA: “O objetivo das convenções é promover a proteção das crianças, em primeiro lugar. As autoridades centrais devem agir para promover soluções amigáveis”. Na prática, há uma diferença entre a atitude brasileira e o forte apoio dos governos estrangeiros a seus cidadãos. O senador Eduardo Suplicy, que tem se interessado por várias disputas do tipo, pediu à ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, que compareça à Comissão de Relações Exteriores do Senado para tratar dos direitos de brasileiras e brasileiros que tenham filhos com pessoas de outros países. No início de março, na iminência de perder os filhos definitivamente, Júlia procurou a deputada Benedita da Silva, que pediu audiência à ministra.

Pedi a Júlia para conversar sozinho com os meninos. Perguntei onde preferem morar. “No Brasil, é claro! Nem sabemos mais falar norueguês”, diz o maior. Os dois garotos têm projetos semelhantes aos de milhares de outros pequenos brasileiros. O mais velho gosta de skate e, principalmente, de futebol. “Na Noruega, ninguém sabe jogar”, afirma. “Quero ser profissional.” O menor prefere o surfe – mas as praias norueguesas não são como as brasileiras. Afirma só ter uma grande saudade da Noruega: um calendário de chocolate lançado todo mês de dezembro. “Para cada dia, tinha um pedaço de chocolate, e no Natal, um enorme!” Os dois meninos são taxativos: querem ficar com a mãe e gostariam de poder visitar o pai. Passar as férias com ele. Ir e vir. Júlia volta para a mesa. Os dois filhos a abraçam.


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