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quarta-feira, 27 de março de 2013


Resistência (de chuveiro) é sim questão de gênero

Leonardo Sakamoto

Você, cara leitora, já pediu para um homem consertar um chuveiro? 

A educadora Gabriela Monteiro* escreveu o texto a seguir para este blog, contando como isso mudou sua percepção do dia a dia.  

Meninas, meninos, vale a pena ler.

Poucos prazeres são tão reconfortantes quanto o banho do final do dia. Aquela hora de desarmar, abandonar as batalhas diárias vencidas ou perdidas, se ausentar das preocupações e deixar que a água purifique tudo – uma mística diária, necessária. Pessoalmente, me permito o luxo de que esse banho seja quente. Calientito y acogedor, así me gusta. E poucas surpresas são tão decepcionantes quanto descobrir durante o banho que a resistência do chuveiro queimou. Tragédia em cinco atos, diria Nelson. Literalmente, uma ducha de água fria em qualquer ritual de relaxamento.

Recém-chegada em um novo prédio e morando sozinha, não soube a quem recorrer. Dois ou três telefonemas me reafirmaram que as amigas mais próximas não faziam ideia do modus operandi da troca de resistência num chuveiro. Infantilmente, pedi ajuda à genitora, que por sua vez não tinha nenhuma experiência no assunto. Feminista de carteirinha, não queria ceder ao senso comum de que precisaria de um homem para execução de uma operação com tamanha complexidade. Mas as noites com banho cada vez mais frugais, entrecortados por saltos e gritinhos dentro do box, lábios roxos e um desânimo trêmulo… Bem, elas foram minando minha vontade.

Humildemente, pedi ajuda ao porteiro e ao zelador do condomínio. Muito solícitos, ele me explicaram que teriam o maior prazer em me ajudar, mas que infelizmente isso era contra as regras do prédio. Não me perguntem que raios de sociedade é essa em que as pessoas são literalmente proibidas de trocar a resistência de um chuveiro, como se fosse uma atividade criminosa. A essa altura, a periculosidade da operação me parecia cada vez maior, envolta pelas ameaças de penas graves aos funcionários do prédio. As opções estavam se reduzindo e minhas preocupações aumentavam: quem poderia me ajudar? Os banhos frios noturnos zombavam da minha incapacidade de lidar com o problema.

No bar, partilhando a angústia, amigos boêmios me garantiam que podiam fazer isso, mas tudo soava a delírio etílico e no dia seguinte ninguém aparecia para colocar a mão na massa.  Confesso que passei a deitar algumas vezes sem tomar banho. Um sono ruim, sem água e sem paz. Ao meu redor, sempre ouvia mesma sentença. Sempre. “Isso é serviço para homem”. Ou suas variáveis: “Você precisa arrumar um homem para isso”, “mulher não sabe trocar resistência”. No trabalho, me indicaram um senhor que cobrava a bagatela de quarenta reais para realizar o serviço. Um homem, obviamente.

Nesse momento, considerei o machismo irritante da situação e repensei a trajetória das minhas estratégias. E um conceito dos mais queridos me veio à mente: Autonomia. Ora, durante todo o processo, minha ação fora “em busca de” alguém ou algo que pudesse solucionar o problema. Já estava mais do que na hora de mudar de perspectiva e assumir um pouco de protagonismo nessa história. Se eu pudesse desenvolver minhas habilidades, estaria construindo uma forma mais autônoma – e verdadeiramente feminista – de encarar os supostos impedimentos relacionados aos papeis de gênero. Eu podia dar um jeito naquilo. Nem que eu tivesse de perguntar ao Google.

Aproveitei o sábado para pôr em ordem a casa, reservando o desafio para o final, com uma expectativa quase divertida. Percebi que me faltava a bendita resistência nova e pacientemente fui até o supermercado comprar uma. A essa altura, estava completamente saturada do problema, mas ainda insegura se poderia dar conta dele sozinha. No caixa, perguntei por curiosidade:

- A senhora por acaso já trocou uma resistência?
- Não, minha filha. Só quem faz isso é homem.
- Não é verdade, minha senhora. Também tem mulher que faz.
- Muito difícil, viu? Eu nunca vi.
- Mas se o homem faz, a mulher pode fazer.
- Poder até pode, mas não se interessa. Mulher não gosta muito de aprender. Tá aqui seu troco.

Fui caminhando de volta pra casa, segurando a resistência e me lembrei de outro diálogo, uma história que minha mãe me contou, sobre o período do meu nascimento. Meu pai, que tanto sonhara com um menino, ficara decepcionado com o meu sexo. Para compensar minha ‘falha’ biológica, ele disse a minha mãe que eu seria diferente das outras, não aprenderia coisas de mulheres e sim de homens. Quando minha mãe questionou quais seriam essas coisas, ele respondeu: “Trocar resistência do chuveiro, por exemplo”.

Essa lembrança teve um grande impacto, de me fazer perceber como essa bobagem me antecedia e, aliás, nos antecedia a todas. A naturalização nos serviços de ‘homens’ e de ‘mulheres’ está tão enraizada que nos deparamos com o patriarcado o tempo todo, dentro do banheiro, na fila do supermercado, no bar, no trabalho, na psique. Quantas, quantas vezes e a respeito de tantas coisas, ouvimos dizer que não poderíamos fazer, que não fomos feitas para isso. Quantas vezes acreditamos. Quanto trabalho para desfazer essa educação de ignorância e terror. A resistência do banheiro já havia tomado outras proporções, de bandeira de luta. Eu pisava firme enquanto subia os degraus até o apartamento.

A descrição literal do que aconteceu depois que abri a porta: Desliguei o interruptor de força elétrica, abri o chuveiro, olhei a resistência anterior, coloquei a nova na mesma posição, fechei o chuveiro, liguei o interruptor de força elétrica. Abri o chuveiro: água quente. Olhei o relógio: não haviam se passado dois minutos. Minha vontade era voltar no supermercado, gritar pela varanda, avisar a todas às mulheres: Fomos enganadas! Pombas, o negócio tem três pinos que encaixam em três buracos. Até uma criança pode fazer isso. E nós passamos a vida inteira sendo excluídas dessa tarefa simplória por quê?

Pelas velhas desculpas esfarrapadas de que é ‘difícil’ ou ‘perigoso’. Porque é preciso criar mitos para colocar as mulheres em situação de submissão. Porque é muito seguro assustá-las ou intimidá-las, para que os homens detenham a técnica ou o conhecimento. Puro domínio, pura relação de poder. Em uma dimensão maior, essa é a estrutura social que garante a opressão: centralização de conhecimento e poder, desinformação para a maioria.  Menos de dois minutos para desconstruir mais um dos disparates da mentalidade patriarcal. Revoltantemente simples.

Narrei a saga à minha mãe por telefone, que não deu muita atenção às minhas expressões de indignação, mas ficou curiosíssima ao descobrir que a coisa toda é bem fácil. Perguntou várias vezes sobre o procedimento – do qual quase nada existe a ser dito – e ficou bem animada ao descobrir que agora não precisa mais pedir ou contratar alguém para isso. Ela ficou sinceramente feliz com a novidade. Daí me lembrei de uma outra coisa a respeito do feminismo: não faz sentido você ter autonomia se as outras também não tiverem. Autonomia não é algo individual, liberalizante. É uma dinâmica coletiva, é partilha e solidariedade.  Minha mãe acabou de completar cinquenta anos e está louca para trocar sua primeira resistência, agora que descobriu que pode. Eu já fui chamada para trocar em outras casas e ensinar às amigas.

Parece simples. Parece bobagem. Mas simboliza muita coisa. Te cuida, patriarcado. Nós resistiremos sempre.

(*) Gabriela Monteiro, feminista, educadora política e está pensando seriamente em comprar uma furadeira.

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/03/27/resistencia-de-chuveiro-e-sim-questao-de-genero/

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