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domingo, 24 de março de 2013


Sarah Conly: “Sou a favor de o governo reduzir as porções nas lanchonetes”

Uma filósofa norte-americana cria polêmica ao defender que o Estado intervenha mais e retire escolhas da vida do cidadão, para torná-lo mais saudável e longevo


GRAZIELE OLIVEIRAi

capa livro Contra a autonomia (Foto: Divulgação)
Gostamos de decidir o que queremos, mas temos grande dificuldade para aplicar as lições que aprendemos. Por isso, indivíduos continuam a fumar, comer gorduras e açúcar em excesso e endividar-se. Para impedir que o cidadão continue se ferindo, a filósofa e escritora americana Sarah Conly sugere que o governo elimine algumas liberdades de escolha. Segundo ela, isso faria com que o cidadão se concentrasse nas opções que podem fazê-lo saudável e feliz. Sarah é doutora em Filosofia pela Universidade Cornell, especialista em ética, moral e psicologia das massas, e professora na Universidade de Bowdoin, nos Estados Unidos. Acaba de lançar um livro incendiário sobre o tema, Against Autonomy: Justifying Coercive Paternalism (Contra a autonomia: Justificando o paternalismo coercivo, Cambridge University Press, 2012, ainda sem versão em português). O título é uma referência ao “paternalismo libertário” colocado em prática por alguns formuladores de políticas públicas, principalmente no Reino Unido. Pela filosofia do paternalismo libertário, o governo deveria ressaltar para o cidadão qual é a opção mais benéfica, mas sem eliminar as demais. Sarah considera o paternalismo libertário fraco demais para enfrentar problemas graves como o tabagismo. Com diferentes intensidades, há medidas restritivas, elogiadas por Sarah, em adoção por vários governos. 
Sarah Conly (Foto: Divulgação)
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu, em março, proibir a presença de aditivos como menta e chocolate em cigarros fabricados e vendidos no Brasil Nos Estados Unidos, a discussão no Congresso e nas ruas é o controle de armas. O presidente Barack Obama quer colocar em ação um plano que proíbe, entre outras medidas, a venda de armas semi-automáticas. A prefeitura de Nova York proibiu, no ano passado, a venda de refrigerantes em copos de tamanho grande (acima de 470 ml) – a decisão, entretanto foi revogada na última semana por um juiz da cidade.  
ÉPOCA – Por que a senhora acha que, em algumas situações, o governo tem de tomar decisões no lugar do cidadão, em vez de deixar abertas as opções?
Sarah Conly – O governo dispõe do tempo e dos recursos necessários para descobrir o que não devemos fazer. Por exemplo, na maioria dos países desenvolvidos, o governo decide quais tipos de medicamentos podem ser comercializados, em vez de deixar qualquer um vender o que quer. Esse também é o caso dos governos que estabelecem normas de segurança para carros, em vez de deixar para nós a decisão sobre quão eficientes devem ser os freios. Isso nos priva de um certo tipo de liberdade de escolha, mas não nos importamos com isso, porque o exercício dessa liberdade tomaria muito tempo e levaria a muitas escolhas erradas.

Mesmo nos casos em que podemos conhecer os fatos, muitas vezes cedemos à tentação de fazer o que é ruim para nós mesmos. Sabemos que não é saudável comer muita comida gordurosa e de preparo rápido, mas nos EUA as pessoas ainda comem muito esse tipo de refeição, e há uma epidemia de obesidade. Nos últimos anos, os economistas comportamentais e psicólogos sociais têm aprendido muito sobre os tipos de erros que rotineiramente fazemos ao escolher. Quero usar essa informação para nos ajudar a escolher melhor. Quero estender esse tipo de política que nós já temos, na medicina e na segurança dos automóveis, para outras áreas, especialmente na saúde pública. Por exemplo, defendo tornar os cigarros ilegais e limitar o tamanho das porções em redes de lanchonetes, como o McDonald’s, a fim de combater a obesidade.

ÉPOCA – Os governos erram muito, em todas as áreas. Delegar esse poder ao governo não é muito arriscado?

Sarah – É sempre arriscado dar poder ao governo, deixando-o fazer qualquer tipo de lei. Ainda assim, decidimos nos últimos milhares de anos que é melhor ter leis do que não tê-las, mesmo que erros sejam cometidos. Então, assim como é agora, queremos que os governos façam leis para impedir as pessoas de ferir umas às outras, mesmo que às vezes façam uma lei estúpida. Quando eles fazem uma lei estúpida, tentamos mudá-la. Isso seria igualmente verdade com essas leis paternalistas: a maioria seria útil, algumas não, e quando encontrarmos uma lei ruim nós vamos tentar mudá-la.

ÉPOCA – Que tipo de benefício poderíamos ganhar ao abrir mão de algumas opções?

Sarah – Seríamos mais felizes porque seríamos mais bem sucedidos em conseguir o que queremos. A maioria das pessoas não quer ser um obeso e sem saúde. A maioria das pessoas não quer morrer de câncer de pulmão. Uma regulamentação do governo poderia nos ajudar a viver a vida esperamos para nós mesmos. 

ÉPOCA – Há casos em que uma opção individual pode prejudicar diretamente os outros – por exemplo, dirigir após consumir álcool ou ter uma arma de fogo. Qual é o limite razoável para o exercício desse tipo de liberdade?

Sarah – Se você vive em sociedade, você precisa regular a sua conduta de forma a fazer isso de uma maneira segura para os outros. Não trato muito disso no meu livro, porque a maioria das pessoas já aceita o fato de que precisamos de leis contra a violência, por exemplo. Então, no livro livro destaco leis e regulamentos que nos impedem de nos machucarmos a nós mesmos. Essa é a área ainda controversa.

ÉPOCA – Há casos em que a minha opção só prejudica a mim mesma. Qual é o problema, se eu quiser gastar todo meu dinheiro, em vez de poupar para a velhice, ou comer muito açúcar e gordura todos os dias?

Sarah – Você realmente quer comer gorduras trans? Há algo sobre as gorduras trans que realmente as torna desejáveis? Não. Elas são convenientes para padarias e fabricantes de alimentos embalados, mas os consumidores não as querem realmente. Assim, tirá-las do cardápio não irá tolher ninguém. Em alguns casos, eu concordo, pode valer a pena para nós comer algo que não é saudável. Não tenho certeza de que as tentativas de banir refrigerantes, como a Coca-cola, estejam corretas. Refrigerantes açucarados são ruins para você, mas um monte de gente gosta tanto disso que, para elas, vale a pena poder beber refrigerante. É uma questão empírica. Se as pessoas realmente valorizam uma determinada atividade tanto que seu prazer vale a eventual perda de saúde, eu diria que elas devem poder continuar fazendo isso.
Muitas vezes, porém, estamos fazendo coisas que nos ferem e que nem gostamos tanto assim. Bilhões e bilhões de dólares são gastos todos os anos por pessoas que querem deixar de fumar. Eles não acham que fumar vale o preço pago pela saúde. Em casos como esse, o governo poderia impedir as pessoas de praticar a atividade insalubre que eles próprios não estão gostando. O governo está lá para nos proteger, e para nos ajudar a alcançar nossos objetivos. Para a maioria de nós, o objetivo é ter saúde e viver muito. Nós queremos isso mais do queremos comer sal e gordura. Mas ficamos tentados, quando vemos o sal e gordura na nossa frente e, muitas vezes, cedemos. No geral, preferimos não comer sal e gordura em excesso, e o papel do governo é nos ajudar.

ÉPOCA – Há casos, em países democráticos, que a senhora considere bons exemplos de paternalismo de coerção bem-sucedido?

Sarah – Claro. Onde as leis de cinto de segurança foram impostas elas claramente salvaram vidas. Por isso eu tenho uma foto de uma placa de "apertar o cinto" na capa do livro. As restrições sobre medicamentos que você pode comprar beneficiaram milhões de pessoas. A remoção de substâncias cancerígenas dos alimentos, que nos privam da liberdade de comer algumas coisas, tem sido claramente benéficas.

ÉPOCA – Em março, o juiz Milton Tingling, da Suprema Corte de Nova York, derrubou uma decisão do Conselho de Saúde do município e do prefeito Michael Bloomberg. A decisão derrubada foi a proibição da venda de bebidas açucaradas em embalagens acima de 470 mililitros em lojas, bares, cinemas e casas de shows. O que a senhora pensa sobre a decisão?

Sarah – Eu não posso dizer se a decisão do juiz é a que melhor respeita a lei. Acho que a idéia do prefeito Bloomberg é muito boa. Sei que a oposição a ela foi paga pelos fabricantes de bebidas açucaradas. Eles sabem que consumidores realmente não querem tanto assim as bebidas açucaradas – se você fizer alguém ir ao balcão duas vezes para obter mais bebidas doce, ele não irá. Assim, as empresas de bebidas perderão vendas para os restaurantes que oferecem essas bebidas enormes. Este é um caso em que tentam levar você a fazer algo que você realmente não quer fazer.

ÉPOCA – Também em março, o governo brasileiro decidiu proibir a presença de aditivos como menta, chocolate, canela e cravo, entre outros, nos cigarros fabricados e vendidos no Brasil. Os fabricantes terão 12 meses a partir da publicação da resolução para se adaptar ao novo processo e outros seis meses para retirar de circulação os cigarros nacionais com essas substâncias. O que a senhora acha da decisão?

Sarah – Não estou bem informada sobre a regulamentação brasileira, mas isso soa bem. O Brasil pode ser tremendamente influente sobre outros países se introduzir com êxito a legislação que ajuda os seus próprios cidadãos a resistir aos cigarros. A regulação soa extremamente progressista.

ÉPOCA – Como deveria ser medida a relação entre custos e benefícios de uma proibição? Quando vale a pena lidar com o mercado paralelo?

Sarah – Promover a conscientização é bom, mas às vezes não é suficientemente eficaz. Nos EUA, as escolas do ensino fundamental e médio ensinam que fumar é perigoso, há anos. Mesmo assim, cerca de 20% dos adultos americanos fumam. Há um monte de gente que não foi ajudada. [Se o cigarro fosse proibido,] Haveria um mercado negro? Talvez. Alguns dos que já fumam gostariam de comprar cigarros. Mas, uma vez que muitas dessas pessoas já querem abandonar o cigarro, torná-lo ilegal poderia fornecer o apoio de que elas necessitam. Duvido que muitos dos que ainda não fumam gostariam de usar o mercado paralelo para começar. Quanto a outros temas que discuto, não prevejo um mercado paralelo de gordura trans ou porções grandes de batatas fritas.

ÉPOCA – A senhora trata pouco dos custos impostos à sociedade pelo indivíduo que não cuidou da própria saúde ou das próprias finanças. Por quê?

Sarah – Acho muito significativos os custos que criamos para os outros quando fazemos o que não é saudável. Você não deve se comportar de maneira a custar dinheiro para os outros. Mas esse não era o meu foco no livro, porque esse ponto já é amplamente aceito. Tentei me concentrar em uma área mais controversa, as leis paternalistas.

ÉPOCA – Em vez de proibir o cidadão de consumir, não é mais inteligente que as empresas fossem proibidas de vender determinados produtos?

Sarah – Sim. Geralmente, é melhor se concentrar em indústrias que produzem coisas ruins para a saúde, em vez de indivíduos. É mais eficiente e menos doloroso. Ainda é paternalismo, mas é indireto. Trata-se de impedir que você faça escolhas ruins para a saúde, impedindo que outras pessoas as ofereçam a você.

ÉPOCA – O paternalismo não poderia criar uma sociedade mimada, incapaz de aprender com erros?

Sarah – Acho que realmente temos muita dificuldade em aprender com os erros. Se fôssemos bons em aprender com os erros, não fumaríamos, nem compraríamos o que não podemos pagar, nem comeríamos demais. Sabemos que essas são más decisões mas, muitas vezes, elas não são racionais. Novas normas poderiam nos ajudar a evitar os caminhos que gostaríamos de evitar, se estivéssemos pensando mais claramente.

ÉPOCA – Grandes pensadores, como John Stuart Mill, H.L. Mencken e John Locke construíram a tradição libertária e consagraram o direito individual. Na história do pensamento, quem inspira a senhora a retirar poder do indivíduo e transferi-lo para o governo?

Sarah – A mesma pessoa que deu o argumento mais famoso contra os regulamentos paternalistas, John Stuart Mill. Ele disse que todos temos a obrigação de ajudar uns aos outros e trabalhar para a felicidade uns dos outros. A diferença é que Mill pensava que as leis paternalistas seriam desnecessárias para fazer as pessoas felizes. Ele não sabia o que nós sabemos hoje sobre a maneira como tomamos decisões. Agora, sabemos que muitas vezes as pessoas fazem escolhas que não dão a elas o que elas querem, a felicidade. Acho que, se Mill estivesse vivo hoje e soubesse o que sabemos sobre a psicologia das decisões, ele mudaria de ideia e abraçaria os regulamentos paternalistas.

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