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domingo, 17 de março de 2013


Silvia Pimentel, expert da ONU, diz que a harmonia do mundo depende do respeito às mulheres

Feminista e expert da Organização das Nações Unidas, a mineira defende que só haverá desenvolvimento e harmonia quando buscarmos essa conquista. Saiba mais!

Isabella D'Ércole e Patrícia Zaidan
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"Disseram ao papa que eu tinha um papel
deletério no mundo. E pediram a minha demissão"
(
Foto: Filipe Redondo
)
Uma dor na perna direita incomodava a advogada Silvia Pimentel, 72 anos, na véspera de embarcar para Genebra. Seus bichos de estimação (quatro gatos e três cachorros) a rodeavam em casa, em São Paulo, enquanto juntava o material que levaria na bagagem. Eram relatos de estupros em guerra e em campo de refugiados, histórias de violência doméstica, tráfico de pessoas, morte materna... A viagem seria para presidir pela última vez a sessão do Comitê Cedaw, da Organização das Nações Unidas, a ONU, que fiscaliza o cumprimento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. É a maior instância mundial para a defesa dos nossos direitos. Pode até julgar uma das 184 nações signatárias – várias visitadas por ela – caso uma ofendida entenda que foram esgotadas as chances de encontrar justiça em seu país. A dor, contra a qual lutava com a ajuda de uma fisioterapeuta, tinha de ceder para Silvia suportar três semanas de sessões com os 22 experts do Cedaw e mais um compromisso na Turquia. Desde 2004, ela se dedica ao comitê sem receber salário. Faz isso como seu quinhão pela paz. Professora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, esteve ligada a todos os embates que as brasileiras travaram nos últimos 35 anos. Aqui, Silvia faz um balanço dos dois anos à frente do Cedaw, concluídos em 31 de dezembro. E diz que, apesar das ameaças sofridas, ficou feliz com a reeleição para mais quatro anos – como membro, não mais como presidente. “Ainda há muito a fazer, e isso renova os meus dias”, afirma.
Em 1982, a senhora contou a CLAUDIA que tinha quatro filhos, era desquitada, chefe de família e filiada ao PMDB. O que mudou de lá para cá?
Hoje tenho sete netos, sou bem casada com um homem feminista (o médico Fernando Proença), não atuo em partidos. Quando entrei na luta, a razão era outra. Estava num casamento de seis anos, ligada só aos filhos, e me sentia excluída. O máximo que fazia por mim era ler e ouvir música clássica duas horas por dia. Meu ex-marido foi lamentável: não queria que eu estudasse, que me formasse com o sobrenome dele. A ruptura foi traumática; na época, não era comum uma esposa separar. Minha luta agora é por todas as mulheres do mundo.

Quais são as vitórias palpáveis do Cedaw?
Uma recente foi no Brasil: a família de Alyne Pimentel, que morreu em Belford Roxo (RJ), em 2002, por ter sido mal atendida no parto, receberá do governo mais de 100mil dólares. Havíamos pedido explicações ao Estado e elas não convenceram. Outra: a Hungria foi condenada por nós a reparar a violência que uma mãe sofreu por não ter tido apoio para cuidar do filho doente mental.

No mundo, 600 mil mulheres são traficadas todos os anos. O que tem sido feito contra esse crime?
A globalização aumentou o trânsito nas fronteiras, elevou a migração e o tráfico de pessoas, um negócio lucrativo, que só perde para a venda de armas e de drogas. A ação deve ser articulada entre governos, polícias e órgãos de fomento da economia: a origem é a fome, que faz com que mulheres da África, Ásia e América Latina caiam na prostituição. Outras, agenciadas para casar no Japão e na Coreia do Sul, viram domésticas e têm de servir sexualmente amigos do dono da casa. No Brasil, clandestinas da Bolívia, do Haiti e do Peru se escravizam em confecções. Sob pressão, costuram quase 24 horas em locais fechados e sujos. Não sei como as autoridades não intervêm nesse escândalo, tão comum em São Paulo.

Na Síria, estupros são tática de guerra, como no conflito da República Democrática do Congo, onde dezenas ocorrem por hora. Como reagir a isso?
Na África toda, usa-se o corpo feminino para marcar poder. No Congo, de forma exacerbada, odiosa. Na Síria, o exército bombardeia uma vila, entra e estupra as mulheres dos rebeldes – e eles fazem o mesmo na área do adversário. É como se os soldados dissessem: “Suas mulheres agora são nosso território”. Não basta queimar casas e matar. Querem atingir a moral do inimigo. Emitimos recomendações incisivas para que a Síria respeite os direitos da mulher em zonas de conflito e garanta a participação dela na redemocratização. O Cedaw disse isso à Tunísia e ao Egito. Os países são obrigados a criar políticas para mulheres e nos informar. Se as informações não são verdadeiras, relatórios-sombra, feitos por ONGs e fundações, trazem o desmentido.

Não há avanços em Ciudad Juarez, no México, famosa por não conter a matança de mulheres?
O caso chegou ao Cedaw em 2005. Um grupo nosso foi lá e recomendou ações. Mas a questão não está melhorando, não. A complexidade é enorme. O estado é omisso; a cultura, machista; e a cidade se tornou um dos espaços mais terríveis do narcotráfico. Nesse cenário, a mulher é violentada pelo simples fato de ser mulher.

Há países em que a sexualidade ainda é considerada crime. Onde a situação é mais grave?
No mundo todo. Estive no Equador, onde meninas da classe média são postas em clínicas psiquiátricas quando os pais suspeitam que elas sejam homossexuais. No Oriente Médio, famílias tentam “ensiná-las” a gostar de homem. Liberam a ala masculina da casa para fazer sexo com elas. Muitas fogem, algumas se prostituem. É promíscuo, uma das situações mais cruéis que já vi.

Ocorrem embates mais acalorados entre os experts do Cedaw e os representantes dos países?
Às vezes. Recebemos os representantes da Coreia do Norte. Li o relatório e perguntei por que não havia referência à violência doméstica. Um embaixador respondeu: “No meu país, não tem. Veneramos nossas mulheres, a agressão é impensável”. Disse a ele que a Coreia não poderia ser o único país sem violência doméstica, fenômeno universal, só desvelado nos anos 1970, na onda feminista. Sugeri que buscasse estudos e metodologias desenvolvidos a partir daquela época. Isso ajudaria a Coreia a descobrir a realidade. Ele ouviu.

A senhora veio do feminismo, que fez tanto barulho nas ruas. Como se ajustou à imparcialidade da ONU?
Tive que tomar cuidado, moderar. Somos 23 representantes, com culturas diversas. A tensão política global se reproduz ali. Por exemplo: tenho colegas de países aliados à Síria. Não podia politizar a questão, pender para um lado. O objetivo é defender os direitos das mulheres – e eles estão sendo desrespeitados no território sírio. Se não há direitos, não há paz nem desenvolvimento.

O que mais a comoveu em oito anos de Cedaw?
Um costume na Índia: no meio rural, é preciso pôr a culpa em alguém. Se ocorrem problemas como seca, temporal, praga na lavoura ou, ainda, se uma criança morre sem explicação, elege-se uma bruxa. A morte dela trará a normalidade de volta. A comunidade vai com pedras, paus, facas... Temos lembrado ao Estado a sua obrigação de confrontar o imaginário dessas pessoas e reeducá-las. Não podemos admitir isso no século 21.

E qual é a postura em relação à excisão do clitóris, que mata e é comum em várias culturas?
Há países com 98% de mutiladas, a maioria sem escolha. Não chegamos com o argumento de que a excisão tolhe a liberdade e o prazer. Explicamos que pode matar. A ONU entende que é crime. Recomendamos punições e medidas educativas. O Egito adotou boas políticas e os números estão caindo. Algumas nações criaram micronegócios para as mulheres deixarem de realizar a cirurgia em outras mulheres. Mas o ideal está longe.

Como vê as contradições do Brasil? De um lado, o Supremo decidiu por direitos de gays e aborto de anencéfalo. Do outro, o Congresso se torna cada vez mais conservador e resistente a avanços.
É ótimo que o STF opte pelo direito à cidadania. O Congresso está silenciado por fundamentalistas. O Brasil se comprometeu a mudar a lei que castiga mulheres que abortam. Mas tenho dúvidas de que esses parlamentares aprovem um Código Penal que flexibiliza a proibição do aborto. Observo nos debates na ONU uma orquestração entre fundamentalistas, católicos e islâmicos, que se juntam para impedir direitos sexuais e reprodutivos. Respeito muitos católicos, como as freiras que vi nas Filipinas acolhendo jovens prostitutas e tentando reencaminhá- las. Mas desaconselhar o uso de preservativos, por exemplo, é irresponsável. Eu não brigo por brigar.

E sofre perseguições por brigar?
Pessoas do grupo Pró-Vida seguem meus passos. Escreveram à Arquidiocese de São Paulo e ao papa dizendo que eu tinha um papel deletério no mundo. E pediram a minha demissão na PUC. Recebi ameaças no hotel em que fico em Nova York. Um bilhete questionava: “Até onde você pensa que vai?” Enfrentei perseguição ao abrir espaço no Cedaw para lésbicas. Até minhas colegas achavam que não era assunto nosso. Algumas não me queriam na presidência, me viam como militante, sem os limites da representação governamental. Aos poucos, conquistei respeito.

Depois do atentado que matou o diplomata americano na Líbia, sua segurança foi reforçada?
Com o terrorismo crescente, só vejo a tensão aumentar. Temos o nível de diplomata e embaixador e recebemos os mesmos cuidados. O aparato é cada vez maior em Nova York, Genebra e todo lugar. Na Etiópia, o hotel era perto do local da reunião. Não íamos a pé, só podia ser de carro. Já fiz dois cursos de proteção pessoal.

Como neutraliza tanto stress?
Não tenho férias desde que cheguei à ONU. O expert não é remunerado – recebe passagens e diárias –, mas descobre que é preciso aprender a respirar. Aproveito as noites das minhas viagens de trabalho para descansar: tomo um drinque, vejo um espetáculo... Meu marido me acompanha algumas vezes e vamos a museus nos fins de semana. Em Genebra, subo uma montanha, onde há um hotel com termas. É possível tomar banho em piscina de água quente ao ar livre e no meio da neve.


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