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terça-feira, 9 de agosto de 2016

Anibal Faúndes: O homem que aprendeu a enxergar as mulheres

Médico chileno que ajudou a transformar os cuidados com a saúde feminina fala sobre sexualidade, estupro e interrupção da gravidez

RICARDO ZORZETTO | ED. 245 | JULHO 2016
Aos 85 anos, o médico chileno Anibal Faúndes parece incansável. Especialista em reprodução humana e sexualidade feminina, Faúndes ajudou a transformar a maneira de cuidar da saúde das mulheres no final dos anos 1980, ao mostrar que os programas voltados para elas não as beneficiavam, e ainda hoje mantém uma agenda repleta de compromissos que o fazem viajar para o exterior algumas vezes por mês. Entre abril e maio deste ano, ele emendou uma sequência de atividades que o levaram a sete países em três continentes. Esteve na Índia, na Zâmbia, na Suíça, em Camarões, na Dinamarca, no Quirguistão e na Turquia. Sempre a trabalho.

Faúndes se formou em medicina em 1955 na Universidade do Chile. Ainda no internato, o período da graduação em que os alunos trabalham e moram no hospital, ele se sensibilizou com os maus-tratos e o estigma enfrentados pelas mulheres que faziam aborto – tema do livro O drama do aborto, que publicou em 2007 com o colega José Barzelatto – e passou a trabalhar para reduzir os abortos inseguros, uma das principais causas de morte materna. “São dois os mecanismos para reduzir os abortos, educação sobre sexualidade e informação sobre métodos contraceptivos eficazes, além de acesso a eles”, conta Faúndes, que preside o grupo de trabalho sobre prevenção do aborto inseguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo). “A mulher que faz aborto não é favorável a ele, mas o vê como solução”, afirma.
Em 1973, quando o general Augusto Pinochet tomou o poder no Chile, o médico teve de deixar o país. À época diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, José Aristodemo Pinotti, ex-aluno de Faúndes, o convidou para ir a Campinas. No Brasil, Faúndes trabalhou em programas pioneiros de assistência à saúde feminina e ajudou a criar o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Paism).
Na manhã de 30 de maio, dois dias após chegar de Istambul, o pesquisador recebeu a reportagem de Pesquisa FAPESP no Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp), organização não governamental que realiza estudos sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos em parceria com a Unicamp. Alto, magro, voz baixa e ideias ágeis, Faúndes encerrou a entrevista depois de duas horas e meia de conversa e desceu quatro lances de escada a passos rápidos. À pergunta “O senhor não se cansa?”, respondeu: “Quando eu tinha a sua idade me cansava”.
Como a sociedade, no Brasil e no resto do mundo, percebe a mulher?
Infelizmente, ainda se vê a mulher como alguém muito dependente do homem, que deve servi-lo para que esteja tranquilo. Acho que a própria mulher se sente um pouco assim.
Por que isso acontece ainda hoje?
É a famosa história de que atrás de cada homem há uma mulher, que é importante porque ajudou o homem e não por si própria. É o sentimento geral. A mulher é vista como alguém para tornar a vida do homem melhor, para que ele se alimente e se vista bem. Fui ensinado a entender a posição da mulher no meu primeiro casamento [com a socióloga argentina Ellen Hardy, morta em 2010]. Tive uma educação intensiva.
Como foi essa educação?
Conheci Ellen quando já era médico e ela era estudante do secundário, nove anos mais nova que eu. Quando a conheci, ela tinha 17 anos e nos casamos dois anos depois, no Chile. Eu já tinha certo nome e pensava: “Vou formá-la do meu jeito”. Foi o contrário. No início, ela fez o papel da dona de casa, que cuida do marido e dos filhos, até irmos para os Estados Unidos, onde ficamos entre 1963 e 1964, com uma bolsa de estudos. Ela era uma leitora extraordinária, devorava livros. Toda semana passava em frente de casa uma biblioteca ambulante e ela retirava livros. Aí leu The feminism mystique, da primeira feminista famosa, Betty Friedan, e descobriu por que não era feliz, embora desempenhasse o papel que, socialmente, havia sido desenhado para ela. Ellen não estava feliz porque não estava desenvolvendo seu intelecto, sua capacidade de produzir. Ela me colocou o problema e eu disse: “Eu a apoio e você cursará o que quiser; quando retornarmos ao Chile, procuraremos alguém para cuidar das crianças”.
Onde vocês moravam nos Estados Unidos e o que o senhor estudava lá?
Perto de Boston. Fui para a Fundação Worcester para Biologia Experimental, onde se criou a pílula anticoncepcional. Ali estava Gregory Pincus, um dos pesquisadores que idealizou a pílula. Ao voltarmos para o Chile ela decidiu estudar sociologia. Tínhamos dois filhos e fazia uns oito anos que ela havia saído da escola secundária. Ela se formou pela Universidade Católica do Chile, mais difícil de entrar, e anos mais tarde, já no Brasil, foi contratada como docente pela Unicamp, onde desempenhou um papel importante para o desenvolvimento da pós-graduação. Ela introduziu na Faculdade de Ciências Médicas o conceito de ética na pesquisa e criou o primeiro comitê, antes de existir a Conep, a comissão nacional de ética em pesquisa.
Como ela o influenciou?
Ao contar por que não era feliz, ela disse: “Por que, por ser mulher, não posso ser como você? Tenho capacidade de produzir e estou apenas limpando a casa e cuidando das crianças. Por que minha mente deve ficar restrita a isso?”. Progressivamente ela me mostrou que havia a diferença de funções pelo fato de um ser mulher e o outro ser homem. Ao vir para a Unicamp, onde minha vida foi mais tranquila, passei a compartilhar com ela e nossos três filhos as funções da casa. Ela criou uma lista de afazeres, um lavava a louça, outro limpava a casa. Comecei a entender o sentido do feminismo e a necessidade de termos direitos iguais. Ela me mostrava como era aceito que a mulher tivesse menos direitos que o homem e me corrigia sempre que eu me comportava segundo a mentalidade em que havíamos sido formados. Depois ela aprendeu a pensar diferente e eu, a reconhecer que homens e mulheres têm direitos iguais. Foi ela quem me ensinou.
E o senhor levou esse conhecimento para o seu trabalho.
Claro. Quando nos convencemos de algo, passamos a agir de modo diferente. No Cemicamp ela fez um estudo sobre violência sexual em que uma das perguntas era se alguma vez a mulher já havia feito sexo contra a vontade. Ao ver o resultado, não acreditei que 63% das mulheres já haviam feito sexo contra a vontade ao menos uma vez na vida. A proporção de estupros era 7%; e 20 e tantos por cento eram de sexo sob ameaça, quando o homem impõe uma condição do tipo “se você não fizer sexo comigo, haverá esta consequência”. Outra proporção semelhante era de mulheres que se sentiam obrigadas a fazer sexo por serem mulheres. Ellen disse: “Você nunca me obrigou a ter relação sexual?”. Respondi que não e ela falou: “Ah, não? E aquela vez…” Assim, ela me mostrava como perdemos a noção de que existe desigualdade de direitos, produto de uma cultura que nos ensinou que a mulher tem obrigações que o homem não tem. E que o homem teria poder sobre a mulher. O homem passa a ser mais feliz quando aceita a mulher com igualdade de direitos, porque a parceira também se torna feliz.
Idade
85 anos
Especialidade
Ginecologia e obstetrícia
Formação
Graduação em medicina na Universidade do Chile (1955)
Instituição
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp)
Produção científica
Escreveu cerca de 460 artigos científicos, dois livros e 83 capítulos de livros. Orientou 26 dissertações de mestrado e 26 teses de doutorado
Essa visão sobre a mulher ocorre no mundo todo?
É raro o país que conseguiu mudá-la. Os Estados Unidos são machistas. A Europa está muito atrás. Os países da Escandinávia e a Suíça talvez sejam um pouco menos machistas. Os piores são os países árabes. Vê-se em toda parte: em países socialistas, capitalistas e em ditaduras.
Como essa cultura da superioridade masculina afeta a saúde da mulher?
Há tempos escrevi um paper chamado Gênero, poder e direitos sexuais e reprodutivos. Nele, analisei os três tipos de demora que duas pesquisadoras norte-americanas, Sereen Thaddeus e Deborah Maine, associaram à mortalidade materna. A primeira demora está em aceitar que existe um problema e é preciso buscar ajuda. A segunda demora é, tomada a decisão, chegar ao local de atendimento. E a terceira é, dentro do serviço de saúde, o tempo que leva para tratar o problema. A primeira ocorre porque, em muitos países, a mulher não pode decidir ir ao hospital se o marido não autoriza ou não está junto. É comum na África. Mas, se pensarmos no Brasil atual, quanta independência tem uma mulher para consultar um médico sem que o marido saiba?
Ainda ocorre?
Sim, ainda hoje. Em maio, estava na Turquia, falando com grupos dos países árabes sobre as mulheres que deixam de usar anticoncepcional porque os maridos não autorizam, mesmo quando elas necessitariam usá-lo. Em boa parte do Brasil é assim, no Chile também. A mulher não pode usar um método contraceptivo se o homem não estiver de acordo. Há 15 ou 20 anos, fizemos um estudo, dirigido por Ellen, sobre reversão de ligadura tubária, um dos métodos de esterilização feminina. Entrevistamos mulheres que vieram solicitar a reversão da ligadura porque queriam ter filhos e descobrimos que, em muitos casos, a ligadura havia sido feita porque o marido solicitou diretamente ao médico, sem a mulher saber.
Era comum?
Não sei, mas o problema existia em uma época em que no Brasil se aproveitava a cesárea para fazer a ligadura. O médico combinava com a mulher o parto cirúrgico e aproveitava para fazer a ligadura, cobrando por fora, embora ele fizesse os procedimentos usando a estrutura do serviço público. Entre os casos que estudamos, havia aqueles em que a mulher tinha feito laqueadura muito cedo e outros em que nem sabiam que tinham sido laqueadas. Existem ainda outras formas de o homem interferir na saúde da mulher. Há casos em que a mulher não pode ir ao pré-natal porque o marido não está disposto a pedir folga para ficar com a criança que eles já têm. A diferença de poder entre os gêneros contribui para que a mulher se descuide de sua saúde. O homem paquera a mulher e diz que vai usar preservativo. Na hora H, não usa e a mulher que se cuide. Em todos os levantamentos feitos, quando se avalia de quem é a responsabilidade de prevenir a gravidez, vê-se que é da mulher. Os homens não assumem responsabilidade sobre a própria sexualidade. Os médicos que cuidam de mulheres têm de atendê-las com muita atenção porque há um abismo de poder entre quem presta assistência à saúde e quem recebe. Essa diferença de poder se torna ainda maior se o médico que atende a mulher é um homem.
Quais os principais problemas de saúde reprodutiva da mulher?
Com relação à saúde sexual, é a mortalidade materna, que no Brasil e nos outros países da América Latina alcança números injustificáveis. Aqui, a taxa de mortalidade deve ser em torno de 50 mortes para cada grupo de 100 mil nascidos vivos. Digo em torno de porque não existe nada mais subnotificado. A mulher morre na gestação, no parto e no pós-parto e não aparece nas estatísticas. Quando se pergunta por que morreu, a conclusão é hemorragia, insuficiência renal aguda, anemia.
Registra-se a causa específica. 
Sim. Mas a hemorragia ocorre no parto, no aborto. Nos lugares em que é crime, oculta-se a morte por aborto. Em um estudo feito pela médica Mary Angela Parpinelli, que analisou cerca de mil mortes de mulheres de 10 a 49 anos em Campinas no início dos anos 1990, a causa de morte materna mais subnotificada era o aborto. Há um número de mortes que aparece nas estatísticas oficiais, que são as que estão registradas nos atestados de óbito. Mas, ao estudar uma por uma as mortes de mulheres com idade entre 10 e 49 anos, descobre-se um número importante de mortes maternas que não estava nas estatísticas. Se não me engano, só 35% das mortes por aborto estavam registradas. Não deveria ocorrer nenhuma morte por aborto, porque hoje é um procedimento tão simples que não deveria causar mais risco do que uma injeção de penicilina. Não estou exagerando: parto é muito mais arriscado do que um aborto.
O senhor é favorável ao aborto?
Não sou e não conheço quem seja. Mas sou absolutamente contra que uma mulher que faz um aborto seja condenada. São coisas totalmente diferentes. Tanto que os países com menores índices de aborto muitas vezes são aqueles com leis menos restritivas e com mais acesso à assistência. Publicamos no ano passado um artigo mostrando que, quando se legaliza o aborto, inicialmente há aumento da taxa. Não sabemos se é porque se registra mais ou porque aumentou de fato. Logo depois, a taxa começa a cair. O efeito da legalização do aborto é diminuir o número de abortos.
O que explica esses dados?
Com o aborto sendo considerado crime, se uma pessoa de classe média precisa fazer o procedimento, ela procura um profissional bom e paga por isso. A pessoa que realiza o aborto está ganhando dinheiro. Quando se permite que os serviços de saúde realizem o aborto, essas instituições não querem que a mulher retorne para fazer outro. A instituição dá informação sobre como prevenir a gravidez, explica os riscos e sugere ou administra um método anticoncepcional. Desse modo, consegue-se reduzir o aborto repetido, que é metade ou mais de todos os casos de aborto. Manter a prática clandestina é uma maneira de manter a taxa elevada. É absolutamente estúpido quando os legisladores fazem projetos de leis contra esse procedimento e incluem o aumento da pena para quem fizer. Está demonstrado que proibir o aborto não reduz os seus números. Aumenta a morte de mulheres e eleva os custos para o sistema de saúde inteiro.
Acaba sendo mais barato ensinar a evitar a gravidez.
É preciso identificar por que se faz aborto. Os mecanismos para reduzi-los são dois: primeiro é a informação sobre sexualidade; segundo, informação sobre métodos contraceptivos. Educação sexual significa tornar disponível para as escolas pessoas preparadas para responder perguntas sobre sexualidade. Os adolescentes estão cheios de perguntas sobre sexualidade. E onde encontram respostas? Na internet e nas revistas, que muitas vezes fornecem informação deturpada. Estudos feitos no Brasil mostram que, quando se ensinam meninos e meninas a atuar com responsabilidade, em vez de aumentar a frequência de relações sexuais e o número de parceiros, diminui a frequência dessas relações. É preciso ensinar que, se vai ter relação, use preservativo para não ter transmissão de doenças e se proteger de uma gravidez para a qual não está preparado. Também é preciso dar informação sobre métodos anticonceptivos e acesso a eles. Infelizmente, o profissional de saúde segue a lei do menor esforço. É muito mais fácil e rápido ficar sentado no consultório prescrevendo pílula anticoncepcional ou injeção mensal ou trimestral do que ter de se levantar, examinar a paciente e colocar um dispositivo intrauterino, o DIU.
Quais os resultados?Qual a eficácia do DIU?
É muito maior. Essa é outra questão. Quando se fala em eficácia dos métodos anticoncepcionais, em geral se refere à eficácia com uso perfeito, descrita nas bulas. Essa é a eficácia dos ensaios clínicos, que são bem controlados. James Trussel, que é economista e professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, comparou a eficácia observada em estudos populacionais medindo quantas mulheres ficavam grávidas um ano depois de começarem a usar regularmente pílula, anel vaginal ou injeção, e chamou isso de eficácia no uso habitual.
Com uso perfeito, três mulheres em cada mil estão grávidas no final do primeiro ano usando pílula. No uso habitual, esse número sobe para nove. Veja como são ruins as informações dadas sobre a eficácia dos métodos contraceptivos. Na vida real, é diferente. Há o caso de mulheres que, quando ficam sem dinheiro, atrasam a compra de uma nova cartela e só voltam a tomar a pílula um pouco depois do prazo ideal. Se a mulher atrasa dois ou três dias, pode engravidar. Fizemos um estudo tempos atrás sobre a distribuição de anticoncepcionais pelo Ministério da Saúde. Vimos que os métodos chegavam aos municípios, mas nem 30% dos ambulatórios tinham contraceptivo o tempo todo. Muitas vezes, a mulher engravida porque, se não tem dinheiro nem o conhecimento adequado, pode não ter acesso ao método contraceptivo.
Essa é a realidade da maior parte da população brasileira.
Exato. Além disso, as pessoas não têm conhecimento de que o melhor método anticoncepcional, disponível gratuitamente no Brasil, é o DIU de cobre, cuja eficácia no uso perfeito é igual à eficácia no uso habitual e é a mesma da ligadura tubária. No ambulatório do Cemicamp, quem coloca o DIU é a enfermeira. Campinas é o único lugar do Brasil em que uma enfermeira faz isso porque muitos anos atrás eu trouxe uma matrona [obstetriz] chilena que sabia colocar o dispositivo muito bem. No Chile, na Inglaterra, na Escandinávia, as enfermeiras colocam o DIU. Aqui ainda é considerado um ato médico. O Ministério da Saúde tem interesse em implementar o uso do DIU porque esses dispositivos já estão comprados e distribuídos. Mas os médicos não colocam. Estou trabalhando em Recife em um projeto para dar acesso a métodos contraceptivos de alta eficácia no uso habitual, especificamente DIU e implante hormonal, para mulheres em região com zika que não querem engravidar. O projeto consiste em suprimir as barreiras que impedem o acesso a esses métodos. Isso significa ter o método disponível e médicos treinados e motivados a proteger essa mulher.
Esse trabalho será só em Pernambuco?
Faremos também na Paraíba. Pretendemos demonstrar que é possível fazer isso, para que o ministério e as secretarias estaduais de saúde se interessem em reaplicar o modelo. O objetivo é descobrir como fazer para que a mulher na favela realmente tenha acesso a esses métodos. Vamos medir a proporção de gestações não planejadas. No mundo todo, mais da metade das gravidezes não é desejada.
Há pouco, o senhor comentou que não conhecia ninguém favorável ao aborto. Mesmo mulheres em situação precária?
A mulher que faz um aborto preferiria não ter engravidado. Ela não é favorável; apenas vê o aborto como a única solução. Não é correto dizer que a mulher terá problemas emocionais se fizer o procedimento. Haverá problemas emocionais por ela ter engravidado quando não queria ter um filho. O que o aborto causa na mulher é alívio. Ser a favor ou contra é um falso dilema. Condenar a mulher só dificulta a resolução do problema. A saída é dar acesso universal à educação sexual desde criança, à informação correta e aos métodos contraceptivos de alta eficácia, seguindo a escolha da mulher. Porque, se a mulher quer usar pílula e não DIU, ela tem direito. Se ela não se cuidar, a probabilidade de engravidar sempre será maior.
É o direito que a mulher tem sobre seu próprio corpo, não?
Certamente. Uma vez o ex-presidente Bill Clinton disse que o aborto deveria ser legal, seguro e raro. Estou absolutamente de acordo. Uma amiga feminista disse que toda mulher tem direito sobre seu corpo, inclusive de não querer usar contraceptivo e querer abortar. Não estou de acordo porque acho que a maior parte das mulheres não concorda com isso. Não aceito a ideia de que a mulher tenha direito a não usar contraceptivo porque pode abortar. Isso é coisa de pessoas que falam por outras.
O senhor deve pagar um preço alto por essas opiniões.
Um sacerdote de Goiás colocou na internet meu retrato coberto de sangue dizendo que era dos fetos pelos quais eu era culpado por terem morrido. É um conceito ridículo. Recentemente, quando a Câmara dos Deputados no Chile discutia o projeto de despenalização do aborto, ainda não aprovado, alguns deputados que votaram contra e perderam disseram que quem votou a favor seria culpado pelo grande número de abortos que haverá no Chile. Falam isso como se lá não houvesse entre 80 mil e 150 mil abortos por ano. Como é clandestino e ilegal, para eles não existe. Se é legal e seguro eles não querem. O Uruguai legalizou o aborto em dezembro de 2012 e, em dois meses, colocou esse serviço à disposição de todas as mulheres. Em 2015, o índice de abortos lá era de 12 por mil mulheres, um dos mais baixos do mundo. No Brasil é 30 ou 40 por mil.
Vamos mudar de tema. Quando o senhor chegou ao Brasil? 
Em 4 de julho de 1976. Houve alguma dificuldade para me contratar na Unicamp porque o governo brasileiro, que nessa época era militar, consultou o governo chileno, também militar, e disseram que eu saí de lá porque era um médico perigoso. Eu fui diretor do programa de saúde da mulher do governo de Salvador Allende, derrubado pelos militares. Separei o materno e infantil com o argumento de que a mulher existia não só quando era mãe. Ela existia também antes e depois e tinha necessidades de saúde que não dependiam do fato de ela ser mãe. O programa de saúde da mulher do Brasil é uma cópia fiel daquele que iniciamos no Chile nos anos 1970.
De onde veio essa ideia? 
Em algum momento percebi que os programas de saúde da mulher que existiam eram programas que usavam a mulher, mas não eram para a mulher. O programa de atendimento pré-natal é para que o recém-nascido seja sadio. O de aleitamento materno é para que a criança seja alimentada e cresça bem. O de planejamento familiar era para reduzir o crescimento da população. O tratamento antirretroviral oferecido para mulheres HIV positivo era para não transmitir o vírus ao feto. Os programas de saúde da mulher tinham outros objetivos e a mulher era usada como meio para atingir esses objetivos, todos muito positivos. Faltava um programa de saúde da mulher para a mulher.
E fez o quê?O senhor foi pioneiro em propor isso?
No Chile e aqui, sim. Lá, fui assessor de saúde materno-infantil no governo de Jorge Alessandri, que era de direita, no governo de Eduardo Frei Montalva, que era cristão, e quando surgiu Allende, de esquerda, me convidaram a passar de assessor a diretor do programa. Fiquei um pouco mais de um ano no cargo porque começaram a exigir que eu entrasse em partido político. Sou demasiado independente para aceitar as nuan-ces de um partido político. Voltei ao trabalho normal no serviço nacional de saúde. Felizmente, porque, se eu estivesse no cargo, teria sido preso logo depois do golpe. Uma semana depois eu havia ido para uma reunião de pesquisa em Miami e, no dia seguinte, meu nome apareceu em uma lista de médicos exonerados do hospital. Minha mulher averiguou e eu estava na lista de médicos perigosos feita pelo Colégio Médico do Chile. Fui colocado na lista de médicos perigosos porque eu era chefe dos plantonistas do único hospital de Santiago que não entrou em uma greve nacional. Trabalhávamos em uma área muito pobre. Se a gente entrasse em greve, quem iria atender aquelas mulheres? Todos os que foram presos foram mandados para uma ilha ao sul do estreito de Magalhães. Menos eu, que estava fora do Chile e não voltei.
Antes nós já havíamos mandado nossos três filhos para Buenos Aires, onde morava minha sogra. Isso foi em junho e o golpe foi em setembro. De Miami fui a Buenos Aires e minha mulher me encontrou lá. Largamos tudo no Chile. Minha mulher era muito bonita, loira, de olhos verdes, falava inglês. Pela lógica dos golpistas não podia ser revolucionária, de esquerda, então saiu sem problema. Junto com um amigo, eu já fazia parte de um programa de treinamento em saúde sexual e reprodutiva da Organização Mundial da Saúde, a OMS. Houve uma reunião em Buenos Aires na semana seguinte à minha chegada e propuseram que eu fosse para Genebra, na sede da OMS. Na época existia a discussão sobre fuga dos cérebros dos países latino-americanos para trabalhar nos países desenvolvidos. Minha mulher e eu éramos contra e decidimos não sair da América Latina. Eu já era conhecido e me ofereceram um cargo na República Dominicana, onde morei dois anos e meio antes de vir para o Brasil.
O que o senhor fazia lá?
Era assessor de um programa de planejamento familiar. Eu trabalhava no Ministério da Saúde e iniciei também um programa de prevenção de câncer de colo de útero, além de organizar um programa de amamentação infantil, o programa da mulher.
Poderia contar como foi o convite para vir ao Brasil?
José Aristodemo Pinotti, que havia sido meu aluno no Chile e era diretor do Departamento de Tocoginecologia da Unicamp, foi a primeira pessoa a nos ligar depois do golpe e me convidar a vir para cá. Bussâmara Neme, que havia criado o departamento na Unicamp, mandou o Pinotti estudar comigo e ficamos muito amigos. No telefonema, Pinotti disse que, quando eu resolvesse sair da República Dominicana, que o avisasse. Na época, começaram a me oferecer postos em diferentes lugares. Não aceitamos ir para o mundo desenvolvido e decidi vir para cá.
O que encontrou ao chegar, uma vez que o curso de medicina na Unicamp ainda estava no começo?
Ficávamos na Santa Casa de Misericórdia, no centro de Campinas. Quando cheguei, descobri que era comum pessoas entrarem na sala de parto vestidas com a roupa que usavam na rua, enquanto todos lá já estavam paramentados. Uma vez chegou um parto pélvico e chamamos o residente. Ele entrou vestido de rua e colocou um avental. Eu disse: “Não se entra para atender um parto vestido assim. Atendo eu”. Decidi que ninguém mais entraria ali sem as roupas adequadas. Impus disciplina. Era professor na sala de parto, na enfermaria. Cada aluno tinha duas pacientes e eu os desafiava a conhecer melhor cada uma delas, porque eu conhecia todas. Nunca aceitei que não conhecessem a paciente pelo nome, nem que chegassem para examinar sem dizer ao menos bom-dia e pedir autorização para examinar. Acho que é por causa desse respeito que essa maternidade tem sido bem qualificada pelas pacientes.
Houve alguma resistência a sua contratação na Unicamp?
Zeferino Vaz era o reitor e muito amigo de Roberto Caldeyro e Barcia, meu preceptor no Uruguai. Depois de Caldeyro dizer-lhe que aquela era uma contratação muito boa, Zeferino disse ao governo brasileiro que se responsabilizava por mim. Cheguei em 4 de julho e 10 dias depois fui convidado pelo Ministério da Saúde para discutir problemas de saúde materno-infantil. No encontro, eu disse que era necessário criar comitês de mortalidade materna, que funcionaram bem por um tempo. Ainda acredito que um dos problemas do Brasil é a falta desses comitês, formados por pessoas qualificadas que avaliam cada morte materna de determinada região. O objetivo é verificar por que não se evitou a morte, já que a maior parte delas é evitável, e tomar medidas para corrigir o problema.
Não é punitivo?
Punir não funciona. Em Campinas funcionou um comitê municipal até pouco tempo atrás. Sempre disse que esses comitês tinham de ser profissionalizados e não podiam funcionar com trabalho voluntário. É difícil investigar esse tipo de morte se não há um sistema que recolha informações e as faça chegar à direção do comitê. Isso tem um custo e exige gente especializada. Organizamos em Campinas o primeiro seminário sobre mortalidade materna. Discutimos o assunto e produzimos o livro Morte materna, uma tragédia evitável. É evitável, mas não se evita.
Desde que chegou ao Brasil, melhorou o atendimento à saúde da mulher?
Em alguns lugares sim e em outros, piorou. O problema no Brasil é a cesárea, que envolve um risco grande. Ela deixa uma cicatriz no útero e, quando a mulher quer ter outro filho, é maior o risco de ocorrer placenta prévia, placenta acreta ou ruptura prematura de membranas. Estamos criando gerações de mulheres com alto risco de ter complicações. Muitos médicos ainda acreditam que a cesárea é mais segura para o recém-nascido e que não causa risco para a mulher. Evidências coletadas no mundo todo mostram que não é assim. É maior o risco para o bebê e para a mulher. E mostram ainda que o porvir obstétrico dessa mulher fica comprometido por toda a vida. Temos hoje muito mais placenta prévia do que havia antes, porque, numa nova gestação, a placenta se assenta sobre a cicatriz. Temos mais placenta acreta, que penetra no miométrio e não pode ser retirada, exigindo a extração do útero, o que causa hemorragia e mortalidade materna alta. Quanto mais cesáreas a mulher fez, maior o risco.
O senhor diz que a mortalidade materna, no mundo todo, é evitável. Onde se é mais eficiente para evitar essas mortes na nossa região?
O Uruguai tem hoje uma mortalidade materna mais baixa do que os Estados Unidos. Nas Américas, a taxa de mortalidade materna do Uruguai só é maior que a do Canadá. Os países de menor mortalidade materna na América Latina são Uruguai, Chile, Cuba e Costa Rica.
Nos anos 1980 vocês propuseram ao governo federal a criação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism), visto com alguma reserva por propor formas de controlar a fertilidade. Como ele deveria funcionar?
Imagine que uma mulher vá a uma unidade de saúde porque tem diabetes. Ninguém pensa que ela pode engravidar. Nem que, se ela engravida, seu diabetes vai piorar e sua gestação será de risco. Se pensa no diabetes, não na mulher. É preciso pensar na mulher, que é necessário oferecer a ela um método contraceptivo apropriado e acompanhá-la. O conceito é simples. Sempre disse aos meus alunos: “Vocês não estão atendendo um útero. Estão atendendo uma mulher, que segue vivendo depois de sair da maternidade. Vocês precisam se preocupar com as outras necessidades dela e não só com o parto”. Nós, médicos, pensávamos apenas na parte da saúde, e um grupo de feministas que havia no ministério passou a pensar também nas necessidades psicológicas e sociais. É preciso olhar a mulher integralmente e não apenas no motivo que a levou à consulta. Esse programa não foi colocado totalmente em prática, mas o atendimento melhorou muito.
O senhor tem um estudo sobre violência contra a mulher. O que encontrou?
Ellen, minha primeira mulher, havia feito a pesquisa sobre sexo contra a vontade, que eu já contei. E de novo remetia à questão do aborto, que é permitido no Brasil em caso de estupro e violência sexual. Uni as duas coisas. De um lado, há o estupro e, de outro, comecei a averiguar que nenhuma mulher consegue fazer a interrupção da gravidez decorrente de um estupro. Na Unicamp, atendíamos de um a dois casos por ano porque havia um convênio com uma ONG, a SOS Mulher*. Quando ocorria uma gravidez decorrente de estupro, eles encaminhavam para a nossa maternidade e o chefe da ginecologia, que era evangélico batista, mas muito humano, fazia a interrupção. Depois que cheguei, éramos ele e eu. Ninguém mais queria fazer. Tempos depois a Maternidade Fernando Magalhães começou a fazer no Rio de Janeiro e também o Hospital Municipal do Jabaquara em São Paulo. Só três maternidades no Brasil cumpriam a lei. Então, decidimos investigar como a mulher tinha conseguido saber desses serviços e fazer a interrupção da gravidez. Também pesquisamos quais eram os procedimentos seguidos nessas maternidades. Depois fizemos um estudo de base populacional, inspirado em um artigo do American Journal of Obstetrics and Gynecology, que correlacionava a história de violência sexual a alterações menstruais. Avaliamos mulheres que haviam sido estupradas, mulheres que haviam sofrido coerção para fazer sexo e mulheres que declaravam não haver sofrido nada e correlacionamos com patologias ginecológicas e obstétricas, fundamentalmente alterações menstruais e problemas sexuais, como falta de orgasmo e de libido.
Quais os resultados?
Encontramos o mesmo que havia sido descrito nos Estados Unidos. Há maior frequência de transtornos menstruais em vítimas de estupro. Quanto maior a gravidade do estupro, maior a frequência. As mulheres estupradas apresentavam mais desses problemas do que aquelas que haviam feito sexo sob coerção. E, entre estas, era maior do que aquelas que faziam sexo por obrigação. Havia uma sequência. E a mesma coisa foi vista na esfera sexual. Falta de libido, falta de orgasmo, tudo isso está relacionado com a história de estupro.
Existe na sociedade o que alguns chamam de cultura do estupro?
A cultura é de que a mulher tem de aceitar o que o homem decide. E tem aquele mito de que a mulher diz que não, mas quer, e depois gosta. Quem sofre abuso não gosta da situação. O estupro é a pior forma de violência. No caso da garota de 16 anos que sofreu um estupro coletivo em maio no Rio, li na internet que ela disse que o que doía não era o útero, mas a alma. Em 1976 fizemos o primeiro seminário sobre violência sexual e se criou o conceito de atendimento de emergência para as mulheres que sofrem violência sexual. Nesse atendimento, a primeira coisa a ser feita é o apoio psicológico, porque o que mais dói é a alma. Depois, proteção contra doenças sexualmente transmissíveis e contra a gravidez. E, claro, o seguimento no longo prazo.
Esse serviço é oferecido efetivamente?
É um dos sucessos que partiu de nossa iniciativa. Temos um programa que se chama Superando Barreiras. Há ainda resistência à interrupção da gravidez. Mas hoje há mais de mil hospitais no Brasil que oferecem atendimento de emergência para mulheres que sofrem violência sexual.
O que ela deve fazer primeiro, ir para a delegacia ou para o hospital?
Para o hospital do serviço público. Aqui em Campinas, onde o serviço está mais bem organizado e há apoio do município, no início havia mais denúncias na polícia do que atendimento no hospital. Agora há muito mais atendimento no sistema de saúde do que denúncias na polícia.

FAPESP

*Nota do Blog: SOS Mulher foi o primeiro nome do SOS Ação Mulher e Família

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