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terça-feira, 20 de setembro de 2016

Entrevista: ‘Primeiros anos de vida formam arquitetura do cérebro’

A ideia de que a creche é apenas um lugar para deixar crianças enquanto os pais trabalham precisa ser combatida. Segundo Cesar Callegari, membro do Conselho Nacional de Educação e presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada, os serviços dedicados a crianças de 0 a 3 anos no país estão sendo expandidos, mas sem a devida qualidade. O sociólogo e diretor da faculdade Sesi de Educação se diz preocupado com a postura de municípios que, para atender à pressão jurídica e social, muitas vezes acabam firmando convênios com creches que desempenham um trabalho ruim. Callegari estará no Rio no dia 30 de junho para participar do “Educação 360-Educação Infantil”, evento que tem realização dos jornais O GLOBO e “Extra” em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, o Banco Mundial, o BID e a Fundação Lemann. O encontro, que reunirá especialistas brasileiros e internacionais, tem o apoio da TV Globo, do Canal Futura, da Revista “Crescer” e da Unicef.
O Brasil dá atenção necessária à educação infantil?
Se a gente considerar a educação infantil como um todo, a pré-escola em grande parte do Brasil é uma etapa mais bem resolvida. Na creche vejo um problema sério, tanto no serviço público quanto privado, porque ainda arrasta uma ideia de que é apenas um local para cuidar da criança, sem objetivos educacionais claros. Isso acaba desvalorizando profissionais e reduzindo as condições de ensino. As famílias reivindicam pouco porque acham que creche é um lugar de guarda de crianças enquanto os pais trabalham. Essa herança de quando a creche era meramente assistencial macula boa parte do que se faz na educação infantil de 0 a 3 anos. Precisamos organizar de maneira clara os procedimentos curriculares na creche. Não é porque a criança não sabe falar nem escrever que não deve haver currículo.
Que impactos essa concepção da creche apenas como “lugar de cuidar da criança” pode trazer para etapas posteriores da escolarização, como a alfabetização?
Nessa fase dos primeiros anos de vida se forma a arquitetura do cérebro, e, portanto, todas as condições de seu desenvolvimento posterior. Por isso, as deficiências educacionais podem comprometer muito mais que a alfabetização. Para ter uma má educação, com crianças em instituições onde não há profissionais preparados e propostas definidas, onde fiquem expostas a descuido e violência, é preferível não ter. É melhor a criança estar em casa do que estar em uma creche onde não há nenhuma intencionalidade no ensino. Temos que garantir que haja de fato expansão da oferta de vagas e a qualificação da educação oferecida.
A expansão tem acontecido sem atenção à qualidade?
Vemos hoje uma preocupação muito grande com a quantidade. O Judiciário tem sido incisivo em forçar a matrícula mesmo quando não há qualidade, mas as crianças não podem ficar amontoadas em uma creche só porque os pais têm que trabalhar. Muitas creches são conveniadas, e aí mora o problema: em várias delas, o padrão de qualidade dos profissionais e das instalações são muito precários. No afã de atender à demanda, com pressão política e social, muitas prefeituras fazem convênios com instituições sem nenhum padrão de qualidade. Temos que garantir que o aumento quantitativo esteja relacionado à qualificação.
Como é possível potencializar os recursos da educação? O ensino infantil deve ser prioritário?
Em educação não podemos fazer escolha de Sofia, porque todas etapas são igualmente importantes, e, sobretudo nos momentos de crise, temos que ter visão de Estado. Qualquer descontinuidade que leve à precarização de atendimento o país carregará para sempre. A sociedade e o Estado devem fazer as escolhas certas e isso quer dizer jamais precarizar a educação. Num momento como esse tenho muitas preocupações sobre o que vem se cogitando sobre a desvinculação de recursos para educação, porque temos recursos mínimos garantidos pela Constituição, e há propostas para que esses percentuais sejam reduzidos ou desapareçam. É um retrocesso gravíssimo que precisamos combater a todo custo.
Isso pode representar um risco maior para a educação infantil?
Se descolarmos a leitura dos dados da realidade da educação infantil vamos ver que algumas coisas precisam ser aprofundadas. No caso de creches, são exatamente os mais pobres que estão fora. Temos que dar prioridade a esse público. Todos têm direito, mas alguns têm necessidade muito maior que outros.
É difícil estabelecer uma agenda para a educação infantil? É complicado conseguir o engajamento dos municípios?
Há municípios grandes, como São Paulo, que têm hoje uma política bastante avançada, com indicadores bem definidos que permitem a avaliação de todo o trabalho realizado. Mas há também municípios que abrem vagas sem controle. Vejo que a definição da Base Nacional Comum pode fazer com que os órgãos de controle tenham critérios mais fortes para cobrar e garantir uma boa qualidade a partir de fiscalização efetiva. A educação infantil acontece nas redes municipais, mas prepará-la não pode ficar só nas mãos dos municípios. Eles devem receber todo apoio dos estados e da União.
Como o Conselho Nacional de Educação pretende contribuir com a Base Nacional Comum no que diz respeito à educação infantil?
Há posições coletivas que já foram fixadas desde 2009 com as diretrizes nacionais da educação infantil, elas são a espinha dorsal das diretrizes da Base Nacional Comum para a educação infantil. A segunda versão da base avançou bastante no sentido de diferenciar as etapas de aprendizagem e no que deve ser estimulado e planejado por parte das escolas em cada faixa etária — bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas. Os pontos mais importantes são as descrições daqueles direitos que existem em relação a essas faixas etárias: seguir regras nas brincadeiras e jogos, aprender a lidar com sucesso e frustração. Pela primeira vez, e aprofundando muito mais o que está nas diretrizes, estamos conseguindo enunciar quais os direitos de aprendizagem do desenvolvimento da criança.
Nesse momento, o quão avançados estamos na promoção de uma agenda de qualidade na educação infantil?
Do ponto de vista de metas quantitativas, de número de vagas, estamos no meio do caminho para mais. Temos uma definição constitucional, que define obrigatoriedade de 100% das crianças matriculadas na pré-escola, além de deveres do Estado, da sociedade e da família. A criança tem que estar na escola. Essa legislação é nova, vamos ver o que acontece. No caso da creche, eu acho que o problema é maior, quanto ao acesso e também à qualidade. Eu daria para a pré-escola nota 8 e no caso da creche estaríamos entre 3 e 4. O cenário tem melhorado, a própria inserção da creche nos sistemas de financiamento como o Fundeb tem impulsionado a abertura de vagas. A crescente judicialização que está acontecendo na área, que vem impondo a matrícula de crianças de 0 a 3 anos, também contribui.

FEAC

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