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sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Novos romances de Daniel Galera e Bernardo Carvalho retratam crises geracionais

Meia-noite e vinte e Simpatia pelo demônio abordam a desilusão da geração que pensava ter tudo e a crise da meia-idade
RUAN DE SOUSA GABRIEL
23/09/2016

Em janeiro de 2014, Porto Alegre parecia terra arrasada. Uma greve dos rodoviários deixou a cidade sem ônibus no meio do verão mais escaldante em quase um século. O clima quase apocalíptico levou o escritor Daniel Galera, de 37 anos, a refletir sobre a última vez em que o mundo pareceu próximo do fim. “Em 1999, havia uma conversa apocalíptica, com o medo do bug do milênio. Mas era diferente desse novo sentimento apocalíptico, que passa pela frustração das expectativas da geração do milênio”, diz.

O escritor Bernardo Carvalho, de 56 anos, foi assombrado por outro tipo de ansiedade apocalíptica, provocada pelos demônios da meia-idade. “A crise da meia-idade me parecia uma vontade desesperada de viver uma segunda adolescência a qualquer preço, a ponto de me dispor a cair numa armadilha”, afirma. Carvalho tentava entender o que significava fazer 50 anos num mundo em crise e ameaçado pelo terrorismo.
Os dois escritores recorreram à literatura para exorcizar essas ansiedades e refletir sobre a crise que suas respectivas gerações atravessam. Na última semana, Galera lançou Meia-noite e vinte (Companhia das Letras, 208 páginas, R$ 34,90), um livro que contempla o mal-estar da geração que ingressou na vida adulta junto com o novo milênio, num país de moeda estável que se familiarizava com a internet, mas dá de cara com a crise quando desvia os olhos do celular. Já em Simpatia pelo demônio (Companhia das Letras, 240 páginas, R$ 44,90), livro que chegou às livrarias nos últimos dias de agosto, Bernardo Carvalho investiga como o mesmo desejo que é capaz de levar um cinquentão à ruína também está por trás de ataques terroristas.
A história de Meia-noite e vinte se passa no tórrido janeiro de 2014, quando três amigos se reencontram no velório de Andrei Dukelsky, o Duque, “um dos maiores talentos da literatura brasileira contemporânea”, que morreu sem colocar o ponto final num livro que já considerava obsoleto. No fim dos anos 1990, Aurora, Emiliano, Antero e Duque eram amigos pós-adolescentes que curtiam alta literatura e festas alternativas. A estabilidade da classe média pós-Plano Real, somada à revolução digital, sugeria que jovens talentosos como eles estavam destinados à glória. Mas não foi bem assim. Antero idealiza ousadas campanhas publicitárias por meio da vulgarização das referências literárias acumuladas na juventude. Emiliano é um jornalista endividado. E Aurora enfrenta a politicagem universitária para continuar suas pesquisas sobre a cana-de-­açúcar.
MEIA-IDADE Bernardo Carvalho, autor de Simpatia pelo demônio. Para ele, o desejo pode resultar  em violência - MATURIDADE Daniel Galera, autor de Meia-noite e vinte. O livro resgata sua experiência no início da internet (Foto: Montagem sobre fotos: Julia Moraes, Ulf Andersen/Getty Images, Henny Ray Abrams/AFP, Shutterstock/Dimedrol68)
meia-idade Bernardo Carvalho, autor de Simpatia pelo demônio. Para ele, o desejo pode resultar  em violência (Foto: Divulgação)
MATURIDADE Daniel Galera, autor de Meia-noite e vinte. O livro resgata sua experiência no início da internet (Foto: Divulgação)












































O romance de Galera tem uma nota autobiográfica. Nos anos 1990, os personagens de Meia-noite e vinte incendiaram a cena cultural gaúcha com o Orangotango, um fanzine eletrônico. Ao lado de outros jovens escritores gaúchos, como Clarah Averbuck e Daniel Pellizzari, Galera foi um dos colunistas de outro fanzine eletrônico, o CardosOnline, que circulou na rede entre 1998 e 2001 e acumulou mais de 5.500 assinantes. “Nós escrevíamos egotrips, o termo que usávamos para definir aquele tipo de escrita autobiográfica no contexto da internet”, diz. “Nós tomávamos certas liberdades para escrever sobre nossas vidas sem a preocupação de que alguém ia checar os fatos.” A última edição do CardosOnline foi enviada no dia 11 de setembro de 2011. Galera vê algo de simbólico na data, que anunciou à geração do milênio que o mundo de estabilidade e esperança que lhes fora prometido não estava imune à ruína. “Do 11 de Setembro para cá, essa tendência ao colapso vem sendo reinterada. Tentei mostrar o sofrimento causado por essa expectativa de um fim do mundo que não chega.”
Carvalho também recorre ao terrorismo pós-11 de Setembro para articular desejo e violência em Simpatia pelo demônio. Rato, o protagonista, é um brasileiro que trabalha para uma agência humanitária que combate o terror e recebe uma estranha missão: pagar o resgate de um misterioso refém de uma milícia desconhecida. No meio de um atentado frustrado, ele conta sua história a um improvável homem-bomba. A confusão da crise de meia-idade o jogara nos braços de chihuahua (assim mesmo, em minúsculas), um mexicano perverso e manipulador que faz Rato de cobaia para provar suas teorias sobre o controle do desejo alheio. Os ataques terroristas de 13 de novembro de 2015, em Paris, foram incluídos no livro. Para Carvalho, o terror seria motivado, entre outras coisas, pelo ódio fundamentalista diante do prazer e do desejo ocidental. “E essa raiva também aparece na meia-­idade”, diz. “Ver os outros tendo um prazer que não temos é enlouquecedor.”
O desejo que gera violência, a meia-­idade que faz um homem adulto agir como um adolescente e a sensação de esgotamento das possibilidades inspiraram um sem-número de escritores ao longo da história, como Thomas MannJonathan Franzen poetas ultrarromânticos. Afinal, crise e crítica derivam do mesmo verbo grego: krinos, que significa “escolher”, “julgar”. Ao refletir sobre esses dilemas, a literatura pode não resolvê-los, mas nos ajuda a exorcizar nossos demônios e acertar o passo enquanto o apocalipse não vem.

Época

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