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domingo, 23 de outubro de 2016

“A 13ª Emenda” relaciona escravidão e encarceramento em massa nos EUA

Com resultado atordoante, documentário de Ava DuVernay percorre séculos de opressão da população negra



Na sexta-feira, 7 de outubro, a Netflix lançou“A 13ª Emenda”, documentário que tem como ponto de partida a relação entre a escravidão (e as condições sob as quais seu fim foi determinado em lei) e o aprisionamento e a violência contra negros e imigrantes nos Estados Unidos nos dias de hoje. Apesar de uma discussão a respeito de uma possível indicação ao Oscar ter se ensaiado nos últimos dias, ela não parece apenas improvável, dado o formato e a plataforma de lançamento, mas menor, despropositada diante do que está em tela.
Dirigido por Ava DuVernay, de “Selma: Uma Luta pela Igualdade”, o longa até ensaia se estabelecer como tantos outros produtos do gênero realizados pela empresa, contentando-se com elogios fáceis que se limitam a ressaltar a importância de se “traçar um panorama” sobre determinado tópico, situação ou contexto. É evidente que tais questões são relevantes — a trajetória da população negra no país é o coração do filme, afinal. A intenção não é negar essa centralidade, mas destacar os elementos do trabalho da diretora que, aliados ao poder de vozes que refletem sobre a própria história, asseguram a força atordoante de sua obra.
A qualidade da pesquisa e da coleta de dados salta aos olhos de imediato. Desdobrando-se como uma coletânea impressionante de imagens de arquivo, recortes de jornais e programas de televisão, gravações e entrevistas, “A 13ª Emenda” percorre séculos de opressão desde o momento em que o primeiro negro foi sequestrado na costa da África, como afirma Angela Davis no depoimento mais emocionante do filme.
É PRECISO QUE AS HISTÓRIAS DE GRUPOS MINORITÁRIOS SEJAM CONSTRUÍDAS POR SUAS PRÓPRIAS VISÕES E VOZES
O que assegura a solidez do documentário é a atenção a sua construção visual. Repetindo o que já havia feito quando retratou Martin Luther King, DuVernay não parece buscar o espetáculo nem se valer de grandes arroubos narrativos; ao contrário, palavras cuidadosamente posicionadas e imagens sóbrias, em sua maioria, são os componentes basilares de seu estilo.
Mais importante do que o arsenal de recursos, porém, é a maneira como o olhar da diretora os trabalha diante da sensibilidade do objeto. Quando reúne a câmera e o entrevistado em um cômodo, recorrendo às estratégias mais básicas do formato (mas nem por isso de domínio mais simples), os enquadramentos e o tom adotado transparecem sensações dignas de nota, ainda que o grande impacto decorra inevitavelmente do conteúdo das falas e do caráter gráfico da violência retratada.
Planos capturados ao longo de uma revisão do longa não somente revelam sinais e marcas do trabalho da diretora, como também apontam um caminho: é preciso que as histórias de grupos minoritários sejam construídas por suas próprias visões e vozes. Em cada um dos quadros, a sensação é de que há espaço para que as ideias fluam. O contraste com as imagens das vítimas, dos tempos de escravidão até os brutais assassinatos cometidos por policiais nos últimos anos, é espantoso.
Além de ter como colaboradores, neste e em outros projetos, um número de profissionais negros e mulheres superior a praticamente toda e qualquer produção norte-americana, DuVernay propõe o diálogo com uma série de especialistas e ativistas que parece muito mais próximo da realidade em debate do que em qualquer painel jornalístico televisivo. Representatividade importa, e a autora compreende isso.

As opções de montagem tomadas pelo filme não poderiam ser mais certeiras. Cartelas e outros recursos gráficos surgem ocasionalmente, pontuando dados e conclusões. A existência de alguns deles — aqueles que trazem números mais escandalosos — se justifica instantaneamente, enquanto outros são distribuídos para produzir efeitos distintos — a recorrência da palavra “criminoso”, por exemplo, é determinante para a finalidade que se pretende alcançar, e vê-la ocupar a tela em todos os segmentos, independente de seu conteúdo específico, é desconcertante.

As faixas da trilha sonora, por sua vez, unem eventos separados no tempo e no espaço, conduzindo (na verdade, ajudando a construir) a linha de raciocínio. O ritmo do segmento inicial parece mais acelerado do que no restante do tempo, talvez motivado pela necessidade de apresentar, de maneira fluida, acessível e antes de seguir em frente, um pano de fundo histórico bastante elaborado.

Definidas as bases do problema, DuVernay (ao lado do co-roteirista Spencer Averick) volta a atenção para três de seus aspectos principais: a dimensão simbólica, o componente legal e o uso político do corpo e da imagem. Em termos de estrutura, há um ordenamento cronológico claro, uma busca por desenvolver o raciocínio com base em evidências espalhadas ao longo de décadas. O percurso nesse sentido, porém, não impede recuos temporais nem engessa a narrativa, que traça paralelos capazes de demonstrar a perpetuação do racismo na sociedade americana.

As imagens abaixo, planos recolhidos de momentos distintos do filme, exemplificam essa ideia. A forma como o sistema de opressão se renova e ressignifica discursos e símbolos de acordo com interesses particulares é central para a reflexão. O cinema também não escapa desse olhar crítico para o passado: “O Nascimento de uma Nação”, de D.W. Griffith, é apontado como motor para o renascimento da Ku Klux Klan (bem como o surgimento do ato de queimar cruzes) no início do século 20.
UMA MONTAGEM COLOCA OS RACISTAS DE ONTEM E DE HOJE LADO A LADO, EMBALADOS PELOS GRITOS DE UM DONALD TRUMP SAUDOSISTA
Em seguida, “A 13ª Emenda” se volta para os pilares e agentes da segregação — dos oficiais de polícia aos presidentes Nixon e Reagan, da guerra ao crime até a guerra contra as drogas, da disputa retórica ao massacre real de comunidades pobres, negras e latinas. São impressionantes, sobretudo, o poder dessa agenda de exclusão — que no início conseguia associar o aumento da criminalidade ao ativismo dos movimentos de direitos civis para depois vinculá-lo à garantia desses mesmos direitos — e seu uso como instrumento político — como visto na eleição de Bush contra Dukakis e nas medidas de segurança pública adotadas por Clinton.
As várias frentes em que a discriminação se estabelece, assim como os variados contornos que ela assume, não se impõem como uma dificuldade para DuVernay. A sensação é justamente oposta: a diretora parece disposta a abarcar tantos elementos quanto sua coerência permitir, um expediente que só é possível porque o filme sabe dosar casos emblemáticos e considerações gerais, discursos passionais e dados concretos.

O olhar sobre os retrocessos é de pesar e desespero, mas nunca de desistência; já a maneira de encarar os avanços é, por vezes, de desconfiança, mas não de ceticismo.
Ainda que caminhe com muita segurança durante a primeira hora e meia, o documentário só revela toda sua potência quando realiza seu movimento mais arriscado: trazer a discussão das análises bruta de estatísticas para a compreensão do presente. Uma montagem coloca os racistas de ontem e de hoje lado a lado, embalados pelos gritos de um Donald Trump saudosista de seus “good old days”, quando o racismo escancarado era acompanhado de um aparato repressivo ainda mais devastador.
No mesmo tom, um republicano que expulsa um manifestante negro de um evento em pleno século 21 é seguido, graças a um corte, pela resposta de um ativista negro de décadas atrás — um plano/contraplano breve, de um instante de duração, mas talvez o que a Neftlix fez de mais cinematográfico em sua curta história. Parte daí, então, a discussão mais interessante de todo o filme, também relacionada ao poder da imagem na luta por direitos.

A FORÇA DAS IMAGENS DE “A 13ª EMENDA” TEM EFEITO DE ANESTESIA, COMO SE IMPEDISSE QUALQUER REAÇÃO IMEDIATA

Como se refletisse sobre o próprio material e a feitura de seu filme, DuVernay ouve os entrevistados: deveria ou não incluir vídeos dos recentes assassinatos de negros e latinos por policiais nos Estados Unidos? A principal preocupação, no fim das contas, parece ser de combater a tendência histórica de mostrar corpos negros apenas como corpos mortos. Ao mesmo tempo, é constante a sensação de que só é possível conquistar a atenção pelo choque.

Os registros feitos por câmeras de celular são encarados como a versão atual das narrativas autobiográficas dos escravos e ex-escravos, dos retratos que capturavam agressões, das fotografias dos linchamentos que os próprios brancos americanos produziam, das revistas e publicações editadas por negros e das campanhas televisivas lançadas a partir dos anos 60. A autora se sustenta, guardadas as devidas proporções, na atitude da mãe do garoto Emmett Till, que decidiu realizar o funeral do filho com caixão aberto para expôr a crueldade de seu assassinato — um dos eventos marcantes no despertar do movimento por direitos civis norte-americano.

Após uma sequência devastadora em que vítimas negras são brutalmente atacadas, “A 13ª Emenda” retoma a ideia de que a violência policial é sintoma, reflexo de uma violência institucionalizada, que mata e aprisiona negros e imigrantes. A força das imagens tem efeito de anestesia, como se impedisse qualquer reação imediata. Uma conclusão geral e definitiva não se faz necessária, porém. O que importa, acima de tudo, é que um material tão bom ganhe as telas — de preferência, nas mãos de figuras tão talentosas e coerentes.


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