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quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Eu, leitora: "Me libertei de um marido conservador e me tornei uma empresária de sucesso"

A pernambucana Mércia Moura, 59 anos, cresceu em berço esplêndido e sob rédea curta num engenho de açúcar. Casou-se por amor, mas largou a faculdade para ser do lar. Quando a autoestima minguou, virou o jogo e decidiu empreender, contra a vontade do parceiro. Hoje, toca uma confecção que produz 1.200 peças por dia e capacita mulheres da região

11.10.2016 | POR DEPOIMENTO A LUÍZA KARAM

“Cresci em Timbaúba, cidade da Zona da Mata pernambucana. Sou a primeira neta de uma tradicional família local, os Cavalcanti, e por muito tempo fui a única menina entre cinco filhos (minha irmã é dez anos mais nova). Talvez por isso meu pai tenha sido tão rígido na minha criação. Aos 12 anos, passei a frequentar um colégio interno do Recife, só para meninas. Filha exemplar e aluna aplicada, passava os dias de lazer lendo o escritor americano Sidney Sheldon e a revista Seleções. Era obediente demais, apesar de sonhar ser dona de mim, como as personagens de minhas histórias favoritas.

Me libertei de um marido conservador e me tornei uma empresária de sucesso

Aos 14, todas as meninas da turma namoravam. Já eu era insegura, pouco saía, não chamava a atenção dos meninos e tinha a mãe como melhor amiga. O menino que abalava os corações naquela época chamava-se Paulo Moura, o Paulinho, e veraneava na mesma praia que eu, Ponta de Pedras, no litoral norte de Pernambuco. Tinha 17 anos, dirigia uma Brasília vermelha, usava calça de verniz e blusa cacharel – o kit de playboy dos anos 70. Num dia de setembro, durante um evento da cidade, Paulinho veio falar comigo. Quase emudeci. Quando cheguei em casa, contei para minha mãe. ‘Esse rapaz não é para namorar’, disse. Mas ele insistiu. Naquele verão, quando fui para Ponta de Pedras, lá estava ele com a família. As empregadas de casa corriam até minha mãe quando ele se aproximava de mim. Eu achava que ele tinha os piores defeitos. Era mulherengo, queria ser senhor de engenho e pouco estudava. Mas não tinha jeito, estava me apaixonando pelo cabra. Quando finalmente me pediu em namoro, disse que ia pensar – do jeito que minha família tinha ensinado – e fui pedir permissão em casa. Meu pai, claro, foi contra. Mas minha mãe sabia amansá-lo. E assim me tornei a namorada de Paulo Moura.

Passei a ir até o engenho toda semana para esperá-lo. Namorávamos das 8 às 10 da noite, aos sábados. Mas não demorou para que ele começasse a faltar aos encontros que, de semanais, viraram quinzenais e logo mensais. ‘O carro enguiçou’, ‘A estrada está barrenta’. As desculpas eram sempre as mesmas. Eu aproveitava suas ausências para desenhar roupas, era ótima nisso. Criava pantalonas, estampas, blusas com apliques e pedia para Ivone, a costureira da nossa casa, remendar. Dali a um ano, quando comecei a frequentar a escola técnica de moda, me apaixonei ainda mais por estilismo.

Tentei terminar com Paulinho, mas sofria muito longe dele. Na vez em que tive certeza de que conseguiria botar um fim em tudo, ele veio até a fazenda em um sábado, no meu aniversário, 27 de setembro. Trouxe uma caixa de chocolates e, quando abri, havia um porta­­­­-joias com um anel de brilhantes no meio dos bombons. Era um sonho, quase desmaiei de alegria.

Continuei minha vidinha acomodada entre a cidade e o engenho. Estudava dentro de casa, enquanto minhas amigas iam para a badalação. Tanto que passei em segundo lugar no vestibular para a faculdade de desenho industrial da Universidade Federal de Pernambuco. Comecei o curso no mesmo ano do meu noivado, no dia 23 de maio de 1976, numa festança em Cipó Branco que só não foi maior do que a do meu casamento, no ano seguinte. Me lembro como se fosse hoje: uma cerimônia para mais de 600 pessoas. Parecia um sonho estar casando com aquele homem.

Paulinho não queria que eu terminasse a faculdade nem trabalhasse. ‘Mulher não pode’, dizia. Cursei seis meses e tranquei a matrícula. Morávamos no engenho Pangauá, da família de Paulinho, na cidade de Itambé, a 89,5 quilômetros do Recife – um lugar gigante, com 1,5 mil hectares, mas meio triste. Passava os dias enfurnada em casa sem muita perspectiva, nem com o que me ocupar. A típica dona de casa. Mas não tinha problema: eu só pensava em Paulinho.

Passava os dias enfurnada em casa sem perspectiva e sem ter o que fazer

Menos de dois anos depois, nasceu nosso filho Paulo Gustavo. Os outros dois, Filipe e Marisa, vieram na sequência. Os primeiros anos passaram rápido – cuidando das crianças, da casa, do engenho e de meu marido. Mas aí minha felicidade começou a minguar. A família não me bastava mais. O fato de não dar vazão ao que havia aprendido me deixava triste. Nessa época, fiz amizades sólidas. Nos arredores de Pangauá, conheci Nelita, tão boa costureira quanto Ivone, aquela da casa de meus pais. Era com Nelita, Penha, Tezinha e Vera, todas funcionárias da fazenda, que sentava para desabafar. Elas contavam suas vidas também. Éramos leais e boas amigas.

Apesar do amparo dessas mulheres, ainda me sentia algemada. Queria trabalhar, ter outro propósito na vida. Desenvolvi até uma alergia que remédio nenhum curava. Andava com o nariz escorrendo e os olhos lacrimejando. Foi meu sogro quem sugeriu a alternativa: ‘Por que você não cria galinhas?’. Disse que aquilo estava dando dinheiro. Quando contei a Paulinho, ele virou a cara e decretou que não mexeria um dedo para me ajudar. ‘Lugar de mulher é dentro de casa. Quantas vezes vou ter que repetir isso?’, disse. ‘Não conte comigo para nada.’

Respirei fundo e resolvi tentar sozinha. Pedi um empréstimo ao banco e por três anos mantive uma granja. Criava pintinhos, esperava que crescessem e os levava para vender no Mercado de Goiana, a 30 minutos de casa. Mesmo sem gostar da atividade, que não tinha nada a ver comigo, aquilo de fato me ocupou. Mais do que isso: me fez notar o peso das correntes que me algemavam. Eu tinha 27 anos, era a hora de me libertar.

Quando contei que queria trabalhar, Paulinho fechou a cara e disse que não mexeria um dedo para me ajudar

Da quantia que levantei com as galinhas, paguei o empréstimo e ainda sobrou um dinheiro. Conversando com minha mãe, a ideia apareceu. ‘Por que você não desenha roupas?’, sugeriu. Sem acreditar muito, comecei a estruturar meu sonho. Usei o dinheiro guardado para comprar seis máquinas de costura, reuni Nelita, Vera, Penha e Tezinha, coloquei todo mundo em uma caminhonete e dirigi até a casa de uma tia que trabalhava com moda para aprendermos o básico do ofício. Paulinho não se conformava. ‘Até quando vai durar essa brincadeira?’, dizia. Aquilo me deixava arrasada, mas não ia me fazer desistir.

Com o plano se encaminhando, tive de me sentar com os maridos das meninas, minhas futuras funcionárias, para que eles aprovassem a ideia. ‘Ela poderá ajudar em casa e vai ser muito mais feliz’, dizia. Aos poucos, conquistei a confiança de todos. Menos a de Paulinho. ‘A casa está uma bagunça’, repetia. ‘As crianças estão abandonadas.’ Eu sabia que não era verdade. Não, não ia desistir.

Decidi que concentraria a produção em camisas, o que há de mais difícil para costurar. Queria o maior desafio que houvesse. Minhas peças seriam impecáveis. Batizei a marca de MM Special (minhas iniciais) e meu sogro, vendo nosso empenho, nos ofereceu a casa-grande do engenho, que estava desabitada, para ocuparmos. Num cômodo, trabalhava com as meninas. No outro, deixava meus filhos. A primeira coleção foi focada nos anos 70, tema que havia pesquisado a fundo. Criei uma base de modelagem e passei a inventar variações a partir dela, com bordados e patch­work. Como não podia sair do engenho para vendê-las (Paulo ficaria uma fera), minha mãe se ofereceu para ir a campo. Meu primeiro cliente foi Assis Farinha, dono da loja Ele & Ela, superprestigiada em Pernambuco. Seu Assis disse que as camisas estavam puro capricho e, se continuássemos fazendo daquele jeito, seguiria comprando de nós. Meu marido não me proibia, mas também não se mostrava contente. Discutíamos muito, por motivos pequenos que ele fazia questão de inventar. Os mesmos de sempre: a casa, as crianças e meu papel de esposa que, na cabeça dele, eu havia deixado de lado. Mesmo sabendo que não torcia pelo meu sucesso, eu não o julgava. Sabia que ele tinha sido criado para ser assim.

Em 1986, a MM tinha 1 ano e mais dez costureiras contratadas. Crescíamos devagar. Muitas mulheres da vila de Pangauá chegavam sem saber o ofício e aprendiam conosco até entrar na equipe. Naquele ano, minha mãe soube de uma feira de confecção na Alemanha aonde iriam algumas marcas do Brasil e me incentivou a participar. Não sentia segurança, mas, mais uma vez, ela se pôs à disposição para ir até lá e ajudar. Enviamos uma coleção de uns 12 modelos. O sucesso foi instantâneo. A MM Special foi a única empresa do Nordeste a vender no local e receber encomendas. Com o aumento da demanda, contratei mais 20 meninas na região.

No ano seguinte, 1987, minha mãe me convenceu a participar da Fenit, feira respeitadíssima em São Paulo. No segundo dia do evento, tive de pendurar um cartaz de ‘vendas encerradas’ no estande, tantos eram os pedidos. Todos comentavam a qualidade e o acabamento de nossas peças. Estava feliz como havia muito não ficava. Dentro da fábrica, notava-se o mesmo: as mulheres se orgulhavam do trabalho, estavam ganhando bem, usufruindo dos benefícios de uma carteira de trabalho e com a autoestima renovada. Pela primeira vez, Paulinho me olhou com orgulho, chegou até a vibrar ao meu lado. ‘Você merece todo esse sucesso’, dizia. Aos poucos, revia sua postura machista, ainda que com dificuldade. Era muita novidade para ele.

Não demorou para abrirmos a primeira loja da MM Special, em São Paulo, no Bom Retiro. Logo na semana de inauguração, as camisas se esgotaram. O dinheiro que entrava era reinvestido na fábrica, que ia se esparramando ao longo da casa-grande. Mais máquinas, mais fornecedores, mais técnicas, mais pessoal. Passei a viajar três vezes por ano a Londres e Paris e pelo menos uma a Nova York e à China, para pesquisar tendências. Paulo Moura fazia bico, resmungava, mas eu já havia aprendido a lidar. No fim, mesmo assustado com sua própria reação, não conseguia mais disfarçar sua empolgação.

As camisas da MM foram ultrapassando todos os limites e obstáculos – assim como eu. De repente, até os maridos das costureiras resolveram participar. Eles perceberam que as mulheres já ganhavam mais do que eles, trabalhadores do engenho. Com o tempo, tive de construir mais espaço, inclusive uma escola de capacitação dentro da fábrica.

Em 2002, criei uma segunda marca, a Marie Mercié, com proposta mais jovem que a MM e vendas exclusivas para o varejo. Há dois anos, abri lojas em dois importantes shoppings do Recife, onde uma camisa custa em média R$ 370. Mil e duzentas camisas são confeccionadas todo dia [o que gera uma venda estimada em cerca de R$ 11 milhões mensais], por 300 funcionários na fábrica da MM Special – na maioria, mulheres. Outras quase 200 pessoas trabalham como colaboradoras em suas casas, nos arredores do engenho. Exporto para Argentina, Chile, Angola, Estados Unidos e França. Até 2018, o plano é inaugurar cinco novas lojas, quatro no Brasil e uma na Saint Honoré, em Paris.

Meu marido, quem diria, virou meu fã número 1. Sofri muito por não contar com a parceria dele, principalmente no começo. Mas entendi: não era só eu que estava quebrando uma barreira imposta pelas tradições daquela região. Paulo Moura também partia esse paradigma, só que sem ter feito essa escolha. Teve de bancar algo que não havia desejado, muito menos facilitado. E se assumir marido orgulhoso de uma mulher livre.”


A fábrica montada no engenho (Foto: .)

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