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sábado, 11 de fevereiro de 2017

“Estrelas Além do Tempo” é uma história leve (e real) sobre superação de preconceitos

Dirigido por Theodore Melfi, filme narra a luta de três cientistas negras e seu papel na corrida espacial dos anos 1960


Não é difícil compreender o sucesso de “Estrelas Além do Tempo”. Impulsionado pelo sucesso nas bilheterias americanas e por três indicações ao Oscar, inclusive na categoria principal, o longa chega aos cinemas brasileiros nesta quinta com a promessa de apresentar uma história de superação otimista, um feel good movie ensolarado sobre uma temática espinhosa. Além disso, o destaque dado ao elenco, premiado pelo sindicato de atores dos Estados Unidos e amplamente elogiado pela crítica estrangeira, é outro ingrediente na tentativa de conquistar o público.
Em vários sentidos, a propaganda se cumpre assim que o prólogo chega ao fim. Desde a sequência inicial, que também abre o trailer oficial, o diretor Theodore Melfi se mostra interessado em formular um retrato leve, sem pompa nem muita sobriedade, sobre o racismo e o machismo institucionalizados no país nos anos 1960. Mary (Janelle Monáe), Dorothy (Octavia Spencer) e Katherine (Taraji P. Henson), três mulheres negras, estão paradas na beira da estrada quando um policial, homem e branco, se aproxima em uma viatura. Uma atmosfera de tensão ameaça se formar, mas o filme logo busca uma saída tangencial e ameniza o embate direto, concluindo a cena em meio a música e risadas.

O DIRETOR THEODORE MELFI NO SET COM OCTAVIA SPENCER E JANELLE MONÁE

A dinâmica se repete ao longo de toda a trama, ganhando contornos mais fortes apenas em ocasiões específicas, quando o trio vocaliza suas insatisfações diante da discriminação. No restante do tempo, as situações propostas pelo roteiro (adaptado por Melfi e Allison Schroeder a partir do livro de Margot Lee Shetterly) seguem a mesma postura reservada, e a direção se equilibra entre informar sobre as trajetórias das personagens e apresentar seus obstáculos de maneira acessível. O tom moderado com que são feitas muitas das críticas ao sistema se mostra útil para construir um panorama geral da desigualdade e da exclusão, mas pouco eficiente para que o resultado seja verdadeiramente marcante. Em termos de narrativa, o diretor é bastante conservador e jamais arrisca tanto quanto suas protagonistas.
Se passa longe de ousar na linguagem, ao menos “Estrelas Além do Tempo” escapa de outros percalços. Decidido a não seguir a linha de obras como “Histórias Cruzadas”, em que certos personagens brancos são celebrados como heróis pelo mínimo de decência com que tratam os negros, o longa evita também individualizar um antagonista. A ideia é tratar do racismo em suas variadas manifestações: em um sentido mais amplo, o vilão da história é aquilo que impede que a primeira das três mulheres siga a profissão de engenheira, que a segunda seja devidamente recompensada por seu trabalho e que a terceira seja tratada com dignidade por seus pares.
SE PASSA LONGE DE OUSAR NA LINGUAGEM, “ESTRELAS ALÉM DO TEMPO” AO MENOS ESCAPA DOS PERCALÇOS DE OUTRAS OBRAS DO GÊNERO
Há momentos em que essa lógica funciona. Dentro do escritório da NASA, uma legião de homens brancos usando roupas igualmente brancas aparece em planos fixos e distantes, enquanto a protagonista é acompanhada pela câmera em movimento, que ganha vigor quando se aproxima de seu rosto. Contraste semelhante pode ser visto na sala de aula de Mary — ela vista confiante e de frente, cercada pelos mesmos sujeitos incomodados. Trata-se de um esquema simples, mas que permite que olhares e expressões corporais ganhem maior destaque.
Quando decide extrapolar as fronteiras do escritório e olhar para fora da empresa, no entanto, o discurso soa deslocado, impessoal demais. A cena em que Dorothy e os filhos passam por uma manifestação por direitos civis é um exemplo. Ela leva as crianças para dentro e diz, um tanto aflita: “Nós não somos parte dessa confusão”. Ao mesmo tempo em que encaminha novamente o filme em direção ao impacto pessoal desse drama social, o que faz sentido tendo em vista a proposta controlada de Melfi, esse tipo de construção do roteiro torna o discurso menos contundente.
Nos segmentos em que vemos as personagens em casa, a mensagem entra no caminho da narrativa mais uma vez. As poucas aparições de Levi (Aldis Hodge), marido de Mary, soam exageradamente ensaiadas, preparadas apenas como plataforma para discursos prontos. A atriz impressiona pela autenticidade que confere às suas falas, mas o conjunto parece artificial. Um resultado melhor é alcançado no caso de Katherine, provavelmente pelo fato de o filme dedicar mais tempo e atenção a ela.
COADJUVANTES REPRESENTAM DIFERENTES FACETAS DO RACISMO E VARIADOS NÍVEIS DE TOLERÂNCIA — SEMPRE DE MANEIRA UM TANTO ÓBVIA
Nesse sentido, a figura de Jim Johnson (Mahershala Ali) é particularmente interessante, porque impõe à protagonista uma série de desafios também fora do ambiente de trabalho, exigindo novas adaptações. A chegada do coronel ocorre de forma turbulenta, como se certo conservadorismo pudesse se transformar em empecilho para o relacionamento, mas sua permanência e a superação dessa primeira impressão efetivamente mudam as coisas. A reunião da família na mesa de jantar talvez seja o melhor exemplo do filme que poderia ter sido caso a direção não fosse sempre orientada pelo valor prático das cenas e se permitisse respirar em mais momentos como esse.
Voltando ao lado profissional da história, as interações com os demais coadjuvantes têm resultados mistos. O astronauta John Glenn (Glen Powell), a supervisora Vivian (Kirsten Dunst) e o matemático Paul (Jim Parsons) representam diferentes facetas do racismo e variados níveis de tolerância — sempre de maneira um tanto óbvia. O primeiro é focado no sucesso da missão “independente da cor da pele dos envolvidos”, a segunda crê “não ter nada contra” as funcionárias negras, e o terceiro (um dos personagens mais irritantes do cinema em anos) afirma acreditar estar “apenas cumprindo as normas”.
“ESTRELAS ALÉM DO TEMPO” GANHA FORÇA NOS MOMENTOS EM QUE ABRE ESPAÇO PARA A DIMENSÃO SIMBÓLICA DA QUESTÃO RACIAL
Já Al Harrison (Kevin Costner), o chefe dos matemáticos da NASA, não é exatamente um salvador da pátria, mas a ideia de que ele valoriza a protagonista apenas quando ela prova repetidas vezes sua competência, a despeito de todos os obstáculos impostos sem razão pela equipe que o próprio comanda, traz à tona uma lógica de meritocracia bastante distorcida. “Vão ao banheiro onde quiserem, de preferência perto da mesa de vocês” é mesmo o único tipo de conforto que alguém como ele poderia oferecer. É também a única resolução possível quando a utilidade guia a maior parte das decisões tanto na trama quanto em termos de direção. De todo modo, Al desempenha com precisão sua função no escritório. Por estar em posição de comando, cabem a ele também os gestos definitivos: tanto os sutis, como tirar a etiqueta “para pessoas de cor” da garrafa de café, quanto os drásticos, como retirar a marretadas uma placa com os mesmos dizeres do banheiro.
Embora trechos como esse saltem mais aos olhos, “Estrelas Além do Tempo” ganha força também nos momentos em que abre espaço para a dimensão simbólica da questão racial. Nas mesmas telas em que veem o país colocar um homem em órbita pela primeira vez, Katherine, Dorothy e Mary acompanham Martin Luther King questionar a violência contra a população afro-americana. O contraste reflete o estado desconfortável entre o avanço e o atraso, entre romper uma grande barreira espacial e continuar impondo fronteiras sociais.
Infelizmente, embates de imagens como esse são um recurso secundário no repertório do longa, que geralmente prefere tomar o caminho mais curto para enviar seu recado. Se por um lado tanto resguardo incomoda pela insistência em fazer somente o básico, por outro o acabamento simples serve para valorizar os feitos reais das protagonistas — a motivação para que o filme existisse, em primeiro lugar, e o que acabará sendo recordado, no fim das contas.


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