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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

‘Vidas Partidas’ pela violência silenciosa

Pelo celular. Um vídeo mostra uma mulher que levara duas facadas no pescoço, na região central do Rio de Janeiro, na frente de sua filha de apenas sete anos que grita por socorro, encharcada do sangue de sua mãe, em meados de julho. Cristiane de Souza Andrade morrera menos de meia hora depois. Acredita-se que foi um assalto. Dias depois, uma reviravolta nas investigações levanta a suspeita de que o homem que a abordou e a esfaqueou não estava pedindo dinheiro, mas a vida daquela que não queria mais estar com ele, depois de três anos de relacionamento. Parte da família nega a versão, há uma cortina de fumaça sobre o caso. O delegado Fábio Cardoso, da Divisão de Homicídios, afirma ter sido “crime passional”, um nome romântico para outro mais adequado: feminicídio.
Pela televisão. Cena em preto e branco de um corpo caído no chão, uma mulher chora e pergunta por que ele não se matou, um tribunal com calças boca-de-sino, fotos de uma bela mulher loura, glamurosa, uma, como se dizia antigamente, ‘socialite’. No intervalo da Globo News, é anunciado programa especial sobre o assassinato de Ângela Diniz, em 1976. Exatos 40 anos atrás. Ângela, conhecida como a “Pantera de Minas” foi morta a tiros pelo seu companheiro, Doca Street. Doca foi condenado a 15 anos de reclusão – depois de protestos de grupos feministas revoltados com a primeira sentença que arbitrou mirrados dois anos de cadeia para o assassino – mas passou apenas três anos e meio numa cela, cumprindo o restante da pena em regime semi-aberto até ser solto em liberdade condicional.
Primeiro de julho, por todos os cantos, em todas as redes sociais, a notícia é o espancamento de Luiza Brunet por seu então namorado, o bilionário Lírio Parisotto. Brunet passa por cima da iconografia da modelo e revela as lesões no seu rosto. Na internet, há manifestações de solidariedade e congratulação pela coragem em se expor, em profusão, assim como acusações. A ela. Arma-se um bando de peritos em reconstituição de cena de crime. “Não pode ter sido assim”, “por que ela não foi para a polícia direto em vez de pegar um avião para o Brasil?” (a modelo foi agredida em Nova York). Também há os que relacionam agressão a uma narrativa que une altos interesses financeiros a um supostamente natural senso de propriedade privada. E sempre há os que têm por lei culpar a mulher: “alguma ela deve ter feito”. “Mereceu”, eles sentenciam. Do outro lado, muitas mulheres pobres e de classe média louvaram a atitude de Brunet: “não é só mulher de baixa renda que apanha”.
Pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), a notícia é que foram registrados, em 2013, 162.642 casos de diferentes tipos de violência contra as mulheres, sendo a maioria dessas ocorrências casos de violência doméstica. Outro dado ainda mais alarmante: a cada duas horas, uma mulher é assassinada no Brasil.
Pelo cinema, estreia nesta quinta-feira, 4 de agosto, o longa ‘Vidas Partidas‘ (clique e assista ao trailer), com produção de Naura Schneider, que também interpreta a protagonista, Graça, direção de Marcos Schechtman, em seu primeiro filme, e Domingos Montagner como Raul, par e algoz de Graça. Quando o noticiário, que revela que o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking dos 83 países mais violentos para mulheres segundo a Organização Mundial de Saúde, e a vida não dão mais conta da realidade, vem a porrada de uma ficção alicerçada em personagens bastante reais, críveis, longe de estereótipos. ‘Vidas Partidas’ começa com um tenso ‘travelling’ em clima ‘noir’, que vai conduzindo o espectador simultaneamente pela casa de uma família de classe média em Pernambuco – em impressionante reconstituição do início dos anos 80 pela direção de arte primorosa de Zé Luca – e pela mente controladora de Raul. Assisto grudada à cadeira à primeira sequência: uma situação cuidadosamente planejada pelo macho dominador, passo a passo, ao som de “Noturno”, de Fagner, que canta “ai, coração alado (…), não acredito mais no fogo ingênuo da paixão, são tantas ilusões perdidas na lembrança”. Apesar da frieza e requinte de cada pista, da escuridão do cenário e da expressão de desconfiança contida de Graça, não se trata de um assassinato. Raul quer apenas comemorar o aniversário de casamento, tira as duas filhas de casa e arma para que Graça use a camisola das primeiras núpcias. Arma. A armação culmina numa cena de sexo em que fica estabelecido o jogo de dominação.
Naura Schneider me atende de dentro de um táxi, e entre as coordenadas que dá ao condutor, me fala sobre a parte de Graça nesse jogo. “Raul é um homem dominador, que comanda a cena, que acredita que através da imposição da dor, inclusive às filhas, está amando e demonstrando amor. Ele quer manter o controle daquela família, da família que ele considera propriedade dele, mas Graça não é uma pobre coitada, ela permite isso, entrando no jogo e gostando”, analisa. O filme parte desse ponto, inclusive, dos lances finais de um jogo que até então, agradara a ambos os lados. “Isso dá certo até ela ganhar projeção, reconhecimento. É incrível como até hoje, muitos caras não aceitam o sucesso das suas parceiras, não lidam bem com isso, mas imagine como era no início dos anos 80”, conta. Comento com a atriz que o Ministro das Relações Exteriores interino, José Serra, foi ao México, recentemente, e declarou que seria um “perigo” o alto número de senadoras mexicanas. “Pelo menos, ele foi honesto (risos). Isso é o que eles acham mesmo e eles não deixam que cheguemos mais longe. As deputadas sofrem demais, o meio político é extremamente machista”, corrobora.
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“Podia ter sido uma história de amor”. É com esse ‘slogan’ que ‘Vidas Partidas’ se apresenta. Podia, se a personagem de Schneider, em roteiro afiado de José de Carvalho, não tivesse, justamente, ousado cruzar a linha do prestígio profissional. Biomédica dedicada, Graça começa a se destacar à frente de suas pesquisas, em oposição à decadência precoce que o marido, professor universitário de Economia, atravessa. Consegue um emprego para ele, depois de pedir ajuda ao ex-marido de quem Raul sente ciúme. Cabe o parênteses: Raul sente muito ciúme, mas tem uma amante, sua aluna, que sabe pouco dele e o endeusa. Está encomendada a tragédia. O ponto de inflexão se dá na cerimônia de entrega de um prêmio para Graça. Seu discurso relaciona a necessidade de destruição de uma molécula para sua transformação com mudanças socioculturais. “Eu, como cientista e mulher, sonho em poder transformar um pouquinho dessa sociedade sem violência”, brada a personagem. Raul assiste na sombra, à espreita, numa das entradas do auditório. Raul é a sombra de Graça.
Pisando mais fundo no terreno do simbólico, pergunto à Naura se ela considera que a violência contra a mulher seja cultural. Ela é taxativa. “Sim. Em todos os sentidos, tanto no Brasil quanto fora e nós, mulheres, ajudamos a perpetuar essa cultura ao criarmos homens dentro de um ideário machista, que acreditam que somos posse deles. Hoje, nós podemos dizer certas coisas, bem mais do que antes, mas o panorama da violência física não mudou tanto. Inclusive, se olharmos as estatísticas, piorou, porque o Brasil já esteve na sétima posição do ‘ranking’ de países mais violentos, agora, está em quinto. É uma questão social e cultural, uma vez que só a educação pode mudar isso. Só uma educação voltada para a equanimidade dos gêneros, só uma educação que tire a mulher desse lugar de posse, de objeto e a coloque como um ser humano com os mesmos direitos dos homens, pode resolver”, aponta a atriz, que clama por uma educação mais amorosa. “Relações não são contos de fadas, mas limites precisam ser estipulados, não se pode torturar outro ser humano”.
Enquanto permanecemos longe da igualdade e Naura discursa sobre a importância da educação entre uma curva e outra do Rio de Janeiro, pressionada pela maratona que precede a estreia de um filme, penso nas crianças do longa-metragem, duas cândidas menininhas praticamente mudas, e no silenciamento das mulheres desde o berço. O mesmo silêncio ao qual muitas mulheres se entregam quando são agredidas e violadas, como se temessem sofrer ainda mais punição. “Os homens oprimem. São criados para brigar, para não demonstrar emoções, é uma questão de sobrevivência para eles, e desde pequenos, ‘brincam’ de lutar. A chance de um homem violento com a mulher ser violento com os filhos e filhas é enorme e comprovada. Esse homem é um ser violento. Fico imaginando que o Raul deve ter convivido com esse tipo de violência quando criança, entendendo que manter o controle de uma família dessa forma é o correto, é normal. Todos acabam se tornando vítimas desse ciclo de violência, ele, inclusive, porque se destrói”, diz ela, mostrando intimidade com a psicanálise, depois de ter feito sessões na pele de sua personagem, ao lado de Domingos, com a psicanalista Annette Blum, que acompanhou o projeto desde as discussões do roteiro, assinando a construção psicológica dos personagens.
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Raul, um homem real, professor universitário de Economia 
Mas o silêncio feminino, aquele que muitos e muitas chamam de cúmplice, continua pairando no ar. “Muitas mulheres se calam porque não contam mesmo com o apoio de ninguém em volta. Quantas vezes não ouvi relatos como ‘do que você está reclamando se ele põe dinheiro em casa e comida na geladeira?'”, declara com o conhecimento de causa de quem produziu o documentário vencedor do prêmio de melhor média-metragem na Mostra de Direitos Humanos da América Latina, “Silêncio das Inocentes” (2010), com relatos de vítimas em todas as partes do país, incluindo a mítica Maria da Penha, que deu nome à lei sancionada em 2006. Naura, que também é jornalista, está no terceiro projeto com essa temática, tendo feito o papel de uma esposa agredida em “Dias e Noites”, longa de 2008, passado na época do Golpe de 1964. Sua produtora, a Voglia, tem se dedicado a desenvolver somente projetos que abordem questões feministas. “Nas classes mais altas, a mulher fica envergonhada, mas a relação entre agressão e dependência financeira é nítida. Não pelo valor do dinheiro em si, mas por força, dignidade e independência serem tidos como valores masculinos. A gente percebe isso quando vê que, mesmo que sustentem suas casas, há mulheres que continuam aceitando a dominação do homem”. Tento perguntar se isso não aconteceria por que a maioria das mulheres ainda não suporta o vácuo de poder masculino após o desmonte do ideal romântico de relação, mas silencio.
‘Vidas Partidas’ é um filme bem silencioso. A violência paira como aquele tipo de silêncio que precede o esporro, por um terço do filme. Com diálogos bem enxutos para os padrões brasileiros, gestual econômico e uma ritualística vidas-secas no cotidiano mediano, Raul vai sendo construído lentamente, tijolo a tijolo (o esconderijo dentro da casa, o gatinho que aparece morto, a brutalidade com que lida com a filha que faz xixi na cama, a maneira como dá as costas quando a mulher tenta dialogar, os solitários treinos de boxe), detalhe a detalhe. Para olhos atentos, impossível não perceber dois livros que aparecem furtivamente, como mensagens subliminares: um na cabeceira do marido, “Discurso sobre a servidão voluntária” e o outro nas mãos da esposa antes de dormir, “O dever de matar”, título em português para o obscuro volume de contos de Oscar Wilde, “Lord Arthur Savile’s Crime and Other Stories”. Naura Schneider revelou à Vertigem que essas inserções foram contribuições do diretor, Marcos Schechtman. A trama é ardilosamente tecida usando o recurso de idas e vindas no tempo, e consegue embaralhar o espectador ao mostrar seu crime-chave de uma perspectiva específica. Aliás, Naura Schneider chama a atenção para o fato de que o personagem de Domingos Montagner está sempre com alguma chave durante todo o filme, uma metáfora para o poder que exerce de entrar e sair das situações quando quer. É a partir desse crime que a obra transcende a dimensão de filme-denúncia, alcançando o oco do suspense, aquele que se faz presente, novamente, por meio do silêncio.
Vidas Partidas_crédito Gianne Carvalho (34)
O silêncio depois da agressão: a cena da cristaleira, a primeira grande agressão de Raul, é uma das mais impactantes 
Estou curiosa para saber como foi ter tido tantas contribuições masculinas nesse projeto, ainda mais depois que a atriz e produtora me conta que se prepara para um empreitada 100% feita por mulheres: “Gosto que o filme também tenha essa visão masculina. Entendo que estamos num momento do ativismo feminista em que não queremos diminuir os homens, em que reconhecemos seu valor e não queremos ser mais que eles, apenas queremos o mesmo espaço, e qualidade humana acima da questão de gênero.” Ainda assim, provoco-a, lembrando que Domingos Montagner, no material distribuído à imprensa, adota um tom meio chapa branca, defendendo que “antes de ser um discurso feminista ou machista, (o filme) aborda o assunto de uma maneira muito mais complexa. Fala da violência que existe nas relações”. Naura não se esquiva e responde bem-humorada que brigou um pouco, sim, com os homens do projeto, por ainda demonstrarem resistência para assumir a sua própria porção de machismo. Nada de novo no ‘front’. A atriz, que também atuou como apresentadora num grande canal de TV, já foi demitida para que um homem entrasse no seu lugar. Escutou que “ele passaria mais seriedade”. Virginiana pé no chão, criou duas filhas dizendo que sua liberdade estaria relacionada ao dinheiro que produzissem. Hoje, uma delas é empreendedora. “Tive quatro casamentos e saí deles, bem como entrei quando quis. Preciso me sentir inteira numa relação”, confessa. Filha de uma taurina que trabalhava escondido do marido, revelou que, nos bastidores, a mãe conseguiu montar uma fábrica de bordados para cama, mesa e banho, negócio que seu pai veio a administrar mais tarde. Depois de uma hora de barra pesada, recheada por muitos casos devastadores de violência contra esposas e filhas narrados pela atriz, a entrevista termina com uma mensagem otimista sobre a possibilidade de homem e mulher se darem as mãos e serem parceiros em vez de inimigos que se escondem atrás de supostas paixões.
‘Vidas Partidas’ tem apoio do Canal Brasil, Rede Telecine e Oi Futuro.
Leïlah Accioly é um caleidoscópio: escritora, poeta, jornalista, agitadora cultural, curadora, DJ, artista visual, decoradora, ocultista, mãe, geminiana, feminista e o que mais não couber em duas linhas. E-mail: leilah.accioly@revistavertigem.com 

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