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sábado, 18 de março de 2017

Caim e Abel - O relato de como, já na primeira família, "deu ruim"

02/03/2017 por Luciene Félix
Todos aqueles que conseguem um objetivo são invejados por aqueles que não o alcançaram ou falharam.” Aristóteles

Nada revela mais sobre nossa psique que os arquétipos mitológicos, sejam eles judaico-cristãos ou pagãos. Para compreendermos o que origina o ressentimento por Abel, desencadeado em Caim, perscrutemos a relação de Deus para com estes primeiros irmãos.

Os que assemelham-se a nós, um irmão, uma irmã, são sempre um “outro”, espelho e “régua” com o qual nos autoavaliamos. E, sabemos que o “medir-se” pode vir a suscitar admiração ou despertar inveja.

O relato bíblico de Caim e Abel culmina num dos pecados à espreita daqueles que, de alguma forma, se sentem injustiçados pelos pais, os amigos, o chefe ou até mesmo pelo Juiz do céu e da terra: Deus.

Segundo a narrativa em Gênesis, no Antigo Testamento, Adão conheceu Eva, sua mulher. Ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: “Gerei um homem com o auxílio do Senhor”. A seguir, deu também à luz Abel, irmão de Caim. Abel foi pastor; e Caim, lavrador.

Logo no início, Eva reconhece o auxílio de Deus na geração de Caim. A seguir, nasce Abel. Do ponto de vista histórico, talvez tenha havido conflito hierárquico quanto às atividades de apascentar rebanhos e cultivar a terra, no entanto, ambas as técnicas são importantes à subsistência.

Ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por seu lado, Abel ofereceu primogênitos do seu rebanho e as gorduras deles.

Nas culturas antigas, o re-ligare, a religião, estava intrinsecamente atrelada à manifestação de gratidão por tudo o que o divino (metafísica), através da terra (física) nos concedia.

O senhor olhou favoravelmente para Abel e para sua oferta, mas não olhou para Caim nem para sua oferta.

Há distinção – clara! – da parte do 'Pai”, tanto sobre a oferta em si quanto ao filho que a faz. Talvez houvesse em Abel algo que agradara ao Criador: humildade. O coração de Abel é puro, Deus sabe e o corresponde.

O desafio à Caim é reconhecer e aceitar essa deferência ao seu irmão. Sendo evidente que sempre haverá quem receba maior distinção que nós, estaria na reação ao favoritismo divino (provação empreendida por Àquele que nos criou e ao qual estamos submetidos) o teste da opção pela resignação ou pela revolta, tal qual ocorrera com o primeiro anjo caído, Lúcifer?

Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou-se-lhe. O senhor disse a Caim: “Por que estás zangado e o teu rosto está abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo”.

No momento em que testemunha o olhar favorável às dádivas de Abel, Caim começa a invejá-lo, pois como atesta a psicanalista Melanie Klein: “A inveja sofre ao ver o outro possuir o que ela quer para si”. Sentindo-se preterido, Caim fica irritado e, uma vez que “a destrutividade da inveja recai sobre quem a sente”, a fisionomia o denuncia.

Embora onisciente, Deus pergunta-lhe o por quê de estar abatido e o orienta sobre o fato de que SE AGIR BEM, voltará a erguer o rosto, numa clara alusão ao (re)encontro Dele, que está nas alturas.

Afirma a existência do pecado, que se inclina à Caim e sobre o dever de dominá-lo. O mal espreita o vaidoso que, em seu orgulho, exige equidade, imparcialidade: “A inveja é uma paixão relacionada à busca de uma idealizada igualdade entre os homens”, afirma Klein.

Seria essa exigência de igualdade lícita e democrática se houvesse paridade nos sentimentos e nas ações de todos, o que sabemos ser implausível.

Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: “Vamos ao campo”. Porém, logo que chegaram ao campo, Caim lançou-se sobre o irmão e matou-o.

Mesmo tendo sido alertado sobre a necessidade de dominar a tentação para proceder mal, Caim sucumbe, e consuma na prática o que já fizera em pensamento: mata seu irmão.

O Senhor disse a Caim: “Onde está Abel, teu irmão?” Caim respondeu: “Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?” O Senhor replicou: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás maldito sobre a terra que abriu a sua boca para beber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, negar-te-á as suas riquezas. Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra.”

Deus pergunta por Abel. O assassino – e aqui, desde que os homens caminham sobre a terra – não há nenhuma novidade – nega saber dele. “A voz do sangue”  é ouvida por Deus.

Pelo crime perpetrado contra seu irmão, Caim é amaldiçoado, obstada fica sua prosperidade (eis a miséria atrelada ao castigo). É condenado a vagabundear vivenciando a aflição de ser fugitivo, sem paz.

Caim disse ao Senhor: “O meu castigo é excessivamente grande para ser suportado. Expulsas-me hoje desta terra: obrigado a ocultar-me longe da Tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á”.

Caim reconhece o quão pesada é a pena a cumprir. Sente-se obrigado a ocultar-se, longe da face de Deus que, luminosa, não é contemplada pelo pecador. Também presume vir a ser vítima do mesmo crime que perpetrou.

O Senhor respondeu: “Não, se alguém matar Caim será castigado sete vezes mais”. E o senhor marcou-o com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar. Caim afastou-se da presença do Senhor e foi residir na região de Nod, ao oriente do Éden.

O relato encerra-se com a misericórdia divina, pois Caim foi marcado com um sinal que poupará sua vida.

O sinal de Deus sobre Caim tem sido apropriado e perversamente distorcido por muitos que arrogam para si uma suposta superioridade sobre os demais, ousando perpetrar e justificar a barbárie. O sinal não está nos judeus, como outrora aventou Santo Agostinho, tampouco nos negros, como simpatizam os racistas. Indelével no precursor de toda humanidade é a culpa, fruto de nossa dívida eterna para com o Criador.

Não sejamos coniventes com o fomento do MAL que –, valendo-se de nossa inerente vaidade (se não o fôssemos, não invejaríamos) – mesmo ardiloso e sorrateiro, não deixa de ser perscrutável.

Precipuamente inclinados ao pecado, permitir que a inveja faça morada em nossos corações, não consuma – necessariamente –,  homicídios, mas formas rasteiras de agressão ao invejado, tais como fofoca e discórdia, provocando intrigas.

Agindo assim, com a culpa de saber-se invejoso, instaura-se o desassossego. Ao decidirmos proceder bem, não nos inquietando pelas benesses recebidas pelos demais, erguemos com altivez nosso rosto ao Eterno. E, mesmo que não crentes em nenhuma religião, às estrelas, ao sol… à LUZ!

Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana
Galleria Borghese, Roma.

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