*Esta é uma das investigações patrocinadas pelo Programa de Bolsas de Reportagem da Revista AzMina que você ajudou a tornar realidade. Leia a série completa aqui.
Melba, à esquerda, e Sayuri visitam bordeis de Atlanta entregando panfletos de bolsas de estudos. Foto: Nana Queiroz
Ela veste sua dor como armadura. Não é que não a sinta. Precisa respirar fundo muitas vezes antes de começar a revelar suas marcas, os olhos piscam longamente e as mãos se entrelaçam nervosas. Os olhos vão de úmidos a secos, mas brilham.
— Sim, uma noite levei dez mil dólares para casa sem nem precisar dormir com o cara! – ela conta.
— Mas como?! – retruco, em choque. O que faz a cunhada, ao lado, rir alto:
— Como assim, “como”? Olha só para ela!
Olho. Kasey McClure tem 38 anos e o passar do tempo está lhe caindo bem. Os olhos azuis claros enormes, redondos, são contornados por cílios que não parecem terminar nunca. A boca grande emoldura dentes perfeitamente alinhados e brancos. As ruguinhas no canto do sorriso são um charme.
Ela, contudo, não vê a aparência como um presente que veio de graça. Culpa a beleza excessiva pelos abusos sexuais que ela e a irmã sofreram do pai antes dos dez anos. Contínuos. Até pegaram gonorreia. Conta da bronca que ouviram da mãe ao tentar pedir ajuda contra o pai. Lembra das evidências do kit de estupro que foram perdidas na transferência entre as polícia de Flórida e Alabama. Fala do pai que nunca foi punido, lamenta pela irmã que não se recuperou do trauma.
Kasey, ex-stripper e acompanhante que fundou grupo de resgate em Atlanta. Foto: Nana Queiroz
Mas o brilho se sobrepõe. Ela está ali, naquela madrugada fria de dezembro, em uma missão. Seu campo de batalha é Atlanta, na Geórgia, um dos maiores eixos de tráfico sexual do mundo. Uma mistura de renda centralizada e um aeroporto que conecta o mundo aos Estados Unidos e os Estados Unidos entre si explica, parcialmente, o sucesso do mercado criminoso que movimenta alguns dos 32 bilhões de dólares no mundo todo ano, segundo o FBI.
Melba Robinson, diretora do projeto de resgate a vítimas de tráfico sexual do Exército da Salvação, explica que ali existe uma  lei que criminaliza a prostituição e isso têm feito com que muitas vítimas acabem no sistema carcerário americano.

“Eu visito cadeias e tribunais e muitas vezes advogo em favor delas: ‘Por que estão processando essa mulher por prostituição? Ela claramente é uma vítima!’”, conta.
Melba e Kasey fazem parte de um grupo de mulheres chamado “For Sara” que visita stripclubs e bordeis de Atlanta na esperança de identificar vítimas de exploração sexual e oferecer uma saída para elas. “Muitas dessas mulheres nem se dão conta de que são vítimas”, esclarece Melba. “Mas nós temos um questionário que as ajuda a avaliar a própria situação, com perguntas como: ‘eu já fui forçada a fazer sexo quando não queria?’, ‘algum cara já te pediu para fazer sexo para ter um lugar para ficar?’”.
Naquela noite, Kasey, Melba e outras quatro mulheres peregrinaram por sete casas de strip-tease e prostituição entregando agradinhos de Natal e bolos empirulitados (uma das guloseimas engenhosas que só americanos poderiam criar!). Mas o verdadeiro presente estava ali dentro: um folder com as informações de um programa que oferece bolsas de estudo e acolhimento para mulheres da indústria do sexo que se enxerguem, ou não, como vítimas de tráfico.

Reconhecer-se vítima

Clube de Atlanta anuncia “Mundialmente famoso desde 1976 – a lenda vive”. Foto: Nana Queiroz
Peraí: se a prostituição é totalmente criminalizada na maioria dos Estados americanos, incluindo a Geórgia, como é que essas casas continuam funcionando? Kasey explica que a maioria delas usa fachadas legais, como a de casas de massagem e stripclubs, para oferecer serviços sexuais.
“Cafetões são extremamente criativos e entendem muito bem como burlar as leis locais e descrever algo como qualquer outro serviço não ligado à prostituição”, acrescenta Melissa Farley, pesquisadora do Centro de Estudo e Pesquisa em Prostituição da Califórnia.
Entre as sete casas visitadas por nós naquela noite, duas tinham fachadas escuras, a entrada controlada por um interfone e pesadas portas eletrônicas. Eram claramente bordeis, mas possuíam licença de spa. “E quer saber? Eu nem sei se as moças que estão aí dentro são ou não vítimas de tráfico!”, lamenta Kasey, que não é autorizada a entrar e deixa os presentes na portaria.
Nos strip clubs que contavam, às vezes, com mais de 60 garotas, salas vips com cortinas pesadas e escuras propiciam “lap dances” (danças sensuais no colo do cliente) privadas.

Nas paredes, cartazes anunciam que, em alguns dias da semana, elas custam apenas US$ 5.
Depois que entram nessas salas, a mentalidade geral é de o que acontece já não é da conta dos gerentes do estabelecimento – ou da lei. E é nesses quartinhos que algumas strippers decidem negociar seus serviços sexuais. “Em um dos clubes em que eu trabalhei”, conta Sayuri Smith, ex-stripper que participa do grupo organizado por Kasey, “os seguranças chegavam a nos revistar na saída para ter certeza que dávamos o percentual da casa para seja lá o que for que cada uma decidisse fazer.”
A força policial de Atlanta, segundo strippers e prostitutas, raramente aparecem nesses lugares e não gasta muito tempo investigando casos de prostituição. “Às vezes, os policiais são os próprios clientes”, afirma Kasey. E uma das voluntárias complementa, enquanto Kasey balança a cabeça:

“Uma das vítimas de tráfico que resgatamos disse que um policial foi seu melhor cliente durante um ano ou dois.”
Kasey descreve o processo de envolvimento de mulheres americanas no tráfico sexual: as garotas entram na prostituição em busca de um dinheiro rápido para quem tem pouca formação escolar. Depois, associam-se a um cafetão ou segurança para protegê-las ou atrair clientes para ela.
Quando se dão conta, ele está batendo nelas e forçando-as a transar com um número determinado de homens ao dia para pagar pelo hotel em que vivem e outras dívidas. “E aí ele a engravida, pra deixar ela ainda mais presa na situação”, finaliza Kasey. “Prostituição e tráfico sexual andam bem enroscados aqui em Atlanta.”
A americana Rachel conhece essa ladainha de cor. Mãe aos 19 anos e sem nível superior, ela sempre pode contar com a ajuda e o apoio emocional de Rick, gerente do clube em que trabalhava. Certo dia, quando ela chegou para dançar, ele já havia lhe arrumado um cliente para “danças privadas” que se convertiam em serviços sexuais. Depois outro. Bastava pagar a ele um percentual dos lucros.

Na ilegalidade, passar de prostituta a vítima de exploração sexual não foi difícil.
O trabalho era tão exaustivo que ela passou a beber e usar drogas, “o que precisasse  para dar conta do serviço que tinha naquela noite”. Rick aproveitou-se da situação para fazê-la refém. Trabalhou com sua autoestima, disse que ela não servia para nada além daquilo. Cobrava-lhe “multas” por razões diversas, ameaçava garantir que ela não conseguisse mais empregos se não o obedecesse.
No final, mesmo fazendo cinco programas, Rachel já não estava ganhando nenhum centavo ao final da noite. Seus cabelos estavam caindo, ela achava que o filho estaria melhor sem ela. Na noite em que havia comprado uma arma e decidido colocar uma bala na cabeça, conheceu um grupo como o de Kasey, que a acolheu até o diploma e a recuperação completa.
“Quando as pessoas pensam em vítimas de tráfico sexual, elas imaginam essas mulheres colocadas em jaulas. Não é bem assim”, explica ela.

“É uma técnica de lavagem cerebral que começa com a conquista de confiança.”
Melba, no entanto, esclarece que ter um cafetão não configura, per si, tráfico sexual. É a coerção ou fraude, física ou psicológica, que torna esses homens exploradores. “Eles treinam as mulheres psicologicamente para acreditar que a polícia não vai ajudá-las e que, na verdade, elas que serão detidas se buscarem alguém.”

“Mas sabe o mais triste? Às vezes, elas estão tão desesperadas que querem mesmo ser presas, pois na prisão ao menos estarão seguras.”
Com a polícia em seu encalço, um crime pesando sobre suas cabeças, dívidas, filhos para sustentar e o medo da violência dos cafetões, essas mulheres não veem saída. Cabe a mulheres como Kasey abrir brechas de luz nesse poço escuro – mesmo que isso signifique cutucar memórias dolorosas madrugada adentro.

No quartinho dos fundos
Equipe do “For Sara”, em jornada de acolhimento pré-Natal. Foto: Nana Queiroz
Nos bastidores das boates e bordeis que a equipe de Kasey visita, as meninas andam nuas. Têm corpos de tamanhos diversos, com celulites diversas, marcas diversas. Corpos reais. Mas a maioria, negros. Têm rostos simétricos, de assimetria exótica. Corpos esqueléticos, gordos. Jeitos sensuais, ou de um desajeito charmoso. São mulheres jovens. São mulheres.
Uma delas, nua, pede para as “moças da igreja” fazerem uma oração com elas. Cobre seios e vagina com um cachecol, fecha os olhos, estende as duas mãos e declara: “estou pronta”. As outras se aproximam, seguram as mãos uma das outras e das voluntárias e elas pedem coisas comuns. Que Deus as proteja, que elas saibam enxergar um bom caminho.
Kasey está feliz com isso. Nessa hora o brilho é tão forte que parece que ela esqueceu da dor.

Quando as vítimas são crianças

Uma em cada quatro. O número martela na cabeça de Mary Frances Bowley de novo e de novo. Trata-se da quantidade de garotas que sofrerá algum tipo de violência sexual antes de completar 18 anos, segundo estimativa do Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos EUA.

Uma em cada quatro.
Fachada de clube no Fulton Industrial Boulevard, maior centro de prostituição de rua de Atlanta, onde diversas organizações denunciam exploração sexual de menores. Foto: Nana Queiroz
Quando fundou, em 2001, o centro de acolhimento para vítimas de exploração sexual infantil Wellspring Living, Mary Frances mal sabia o que estava fazendo. Só tinha a convicção de que alguém, afinal, tinha que fazer algo a respeito dos 100 mil menores de idade que eram forçados à prostituição nos Estados Unidos.

A idade média dessas vítimas? Onze anos. A estatística é do FBI.
Resolveu focar em sua cidade, Atlanta, onde cerca de 100 meninas são comercializadas por sexo a cada noite. Elas enchem os bolsos de seus exploradores com até US$ 33 mil por semana, conforme revela o Urban Institute.
“Estudos mostram que mais de 90% das crianças traficadas sexualmente nos EUA são americanas. São crianças pobres, que passam fome ou que estão no sistema de lares adotivos temporários”, explica.

“Isso funciona com uma lógica de mercado: há homens com renda disponível e, como ‘consumidores’, demandam crianças americanas e não estrangeiras.”
Às vezes, essas crianças são vendidas pelas próprias famílias, em estado de mais ou menos desespero econômico. Algumas são forçadas a ter relações sexuais com entre oito e dez homens por noite. Mary Frances nunca se esqueceu da garota de 13 anos que havia sido vendida para pagar as parcelas de um carro dos pais.
As primeiras garotas que ela recebeu no Wellspring Living vieram vestidas em laranja e acorrentadas em algemas de três pontas – aquela que prendem as mãos aos pés. É que até 2011, na Georgia, menores de idade também respondiam pelo “crime de prostituição”.
Uma brasileira que trabalha no resgate dessas vítimas em Atlanta conta que, apesar da mudança na legislação, muitas das garotas continuam vindo do sistema carcerário: elas são pegas por crimes como vadiagem (loitering), furto ou outras pequenas infrações.

Hoje, 601 menores permanecem presas pelo mesmo motivo em outros Estados americanos, conforme informa o levantamento mais atual do departamento de Justiça.
“Vejo todas essas moças que entram por minhas portas como garotinhas inocentes que nunca conseguiram se tornar quem deveriam ser”, lamenta Mary. “Fazer com que elas alcancem isso é o que mantêm a chama acesa pra mim.”
Com o tempo, Mary e os demais profissionais do Wellspring Living perceberam que a maneira mais eficiente de ajudar essas meninas era criar programas individualizados e holísticos (ou seja, tratamentos que levam em consideração a pessoa como um todo, não somente como um conjunto de seus sintomas). Elas precisavam de acompanhamento psicológico, treinamento profissional, aconselhamento em mercado de trabalho, além de receber casa, comida, assistência, amizade até. No próximo ano, eles terão capacidade para acolher 200 meninas e mulheres anualmente.
“Elas não se veem como vítimas. Pensam que isso era apenas o que precisavam fazer para sobreviver. Ou ainda: ‘ele (o explorador) me ama e vou fazer isso porque o amo’. Nosso primeiro trabalho é convencê-las de que há mais para elas na vida do que isso”, revela Mary.
Rachel corrobora as observações dela. Lembra de certa vez em que aceitou um convite para gravar um filme pornô. Ao chegar ao local da gravação, mesmo drogada, pôde perceber que as duas meninas que deveriam contracenar com ela tinham 16 anos. E o diretor do filme era seu treinador na escola.
“Tudo o que uma menina despedaçada procura é aprovação. Esses homens sabem disso. Aquele cara havia trabalhado essa falta de autoestima delas, convencido de que eram especiais. Assim, conseguiu que fizessem o que ele sugeria”, comenta. “Essa foi a coisa mais nojenta e triste que vi em meus anos de prostituição.”

Formatura
Elas não parecem jovens destroçadas. Parecem mulheres restauradas. Não são vítimas, mas sobreviventes – e se chamam pela segunda nomenclatura. São oito mulheres, uma delas branca. Todas as demais, negras. As vozes são emocionadas, sim, mas firmes.
— A maioria de nós vem de famílias e vidas disfuncionais, mas somos fortes. Eu sinto isso agora e quero ajudar outras mulheres – depõe uma delas.
É dia de formatura no Wellspring Living e essas mulheres, que foram vítimas de exploração sexual ou estavam em situação de vulnerabilidade para tal, passaram por um programa de 10 semanas de treinamento profissional. Agora começarão um programa de trainee remunerado de 12 semanas.
— Elas são tão inteligentes! Pense nisso: elas sobreviveram a todas essas coisas horríveis. Você precisa ser engenhosa, ou não estaria viva. Você sabe quantas delas são mortas nesta vida? Conheço garotas que viram outras serem assassinadas na frente delas, explica Mary Frances.
No meio tempo, mais uma moça, recém saída da adolescência, vai dar seu depoimento diante das colegas e dos profissionais envolvidos no programa:
— Ninguém nunca me deu nada de graça na vida. Era difícil aceitar essa ajuda no começo, eu vivia me perguntando: ‘o que eles vão querer de mim por isso?’.
Ao final do trainee, 75% terão empregos fixos, me conta Mary Frances. Não antes de cochichar em meu ouvido:
— Está vendo essas mulheres fortes? Pois bem… não eram assim quando chegaram aqui.
A frase de Mary é interrompida pelos solucinhos emocionados de mais uma moça que foi à frente falar:
— Vocês não tem ideia do que significava pra mim que alguém me ouvisse sem me julgar e que realmente se importasse

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