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domingo, 14 de maio de 2017

Prisioneiras, de Drauzio Varella, conta a vida nas prisões femininas

Livro encerra a trilogia de Drauzio Varella sobre o cárcere e mostra que a ordem nas cadeias femininas obedece tanto a razão quanto a emoção
NINA FINCO
13/05/2017 

Há 28 anos, um médico magro, de pernas longas e fala calma perambulava com olhos e ouvidos atentos pelos corredores dos pavilhões da Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru, na Zona Norte da cidade. O oncologista Drauzio Varella, então com 46 anos, iniciava um trabalho de pesquisa sobre a prevalência do vírus HIV na população carcerária local. Trabalhou até a desativação do presídio, em setembro de 2002, fazendo consultas diárias com os presos e descobrindo não apenas sobre as doenças, mas também como funciona a lógica de uma cadeia – a hierarquia, as regras internas e o código de honra.

O resultado desse trabalho foi o livro Estação Carandiru (Cia das Letras), que mais tarde seria adaptado para os cinemas por Hector Babenco. Desde então, Drauzio continuou enveredando pelo caminho da literatura. Em 2012, lançou Carcereiros (Cia das Letras), sobre histórias do outro lado das grades, contadas pelos amigos que fez entre os funcionários do presídio – o livro está sendo adaptado para a televisão pela Tv Globo. Na próxima semana, chega às livrarias o último capítulo dessa trilogia sobre o xadrez tupiniquim. Em Prisioneiras (Cia das Letras, 296 páginas, R$ 39,90), Drauzio desvenda os intrincados mecanismos de uma prisão feminina, regidos por muito mais do que simples códigos de honra.

A estrutura de Estação Carandiru e Prisioneiras é a mesma: primeiro, o leitor é apresentado a uma descrição minuciosa do ambiente e dos cargos dos funcionários. Quando a imagem pesada do excesso de grades e portas e da claustrofobia dos corredores escuros já está gravada na imaginação, aparecem os personagens que preenchem cada esquina da prisão. “A realidade acontece em várias camadas. Você pensa que entende aquela situação, mas há outras variantes mais profundas se passando que nem percebeu.” Em 11 anos de presídio feminino, Drauzio precisou esquecer tudo o que aprendeu nos 17 das cadeias masculinas. “O universo feminino confinado é muito mais complexo que o masculino”, afirma. “E é muito difícil para um homem entrar nisso.”

Ao todo, são 2.400 mulheres, distribuídas em duplas pelas celas. O primeiro estranhamento começou na sala de espera do consultório. O falatório ininterrupto atordoava o médico que precisou interromper consultas para pedir silêncio. A advertência jamais fora necessária em presídios masculinos. Logo no primeiro dia, uma confusão levou Drauzio a conhecer uma líder de pavilhão, ligada ao PCC. Ela se queixou de exaustão por precisar apartar tantos desentendimentos. “Cadeia foi feita para homem, doutor. Mulher não tem procedimento. Aqui elas brigam até por um lugar no varal para pendurar calcinha.” O médico se espantou: estava acostumado à obediência cega dos homens à hierarquia. O código que rege a vida nas prisões não está sujeito às concessões das sociedades democráticas. As punições acontecem de imediato, com severidade, para servir de exemplo, impor disciplina e frear a barbárie. Não há dúvidas do que é certo e errado entre os muros da prisão masculina.

Entre as mulheres, esse respeito afrouxa. Segundo Drauzio, a mulher é mais avessa à submissão aos superiores – por instinto de sobrevivência. Teria sido a habilidade de subverter a ordem e manipular a vaidade dos mais poderosos que permitiu que elas se libertassem do confinamento ao lar e possibilitou ganhar a vida por conta própria. Com isso, a imposição de normas e as relações hierárquicas ganham complexidade incomparável numa penitenciária feminina. Emoção pesa tanto quanto racionalidade.

Prisioneiras mostra que a mais traumática das diferenças entre o cárcere feminino e o masculino é a relação com a família. Ao cumprirem suas penas, elas são abandonadas. “A sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um parente homem, mas a da mulher envergonha a família inteira”, escreve Drauzio. A fila para os dias de visitas são quase inexistentes, mesmo em datas comemorativas. Drauzio se deparou com histórias de mães que viajavam horas para visitar um filho preso no interior do estado, mas não pegavam o metrô para ver a filha na Penitenciária da Capital.

O martírio final é a separação dos filhos. A mulher sabe que a perda do convívio com as crianças será irreparável. Elas correm o risco de ser maltratadas por familiares e estranhos, o que pode contribuir para que enveredem por um caminho de drogas e crime igual ao das mães.

Mesmo convivendo num ambiente totalmente feminino, as mulheres ainda são obrigadas a se submeter à estrutura machista do crime. “A mulher ocupa apenas as hierarquias inferiores das organizações e precisam obedecer aos homens de fora”, afirma Drauzio. Aquelas que pertencem ao PCC precisam cumprir as rígidas regras de conduta da facção, o que inclui fidelidade canina aos valores do “partido” e restrição à homossexualidade. Ao mesmo tempo, as mulheres são isentas das mensalidades pagas ao Comando, pois ele considera que elas precisam cuidar dos filhos.

Após quase três décadas construindo uma ponte entre o interior dos presídios e a família brasileira, Drauzio admite que este foi o livro mais difícil de escrever. “Eu tinha facilidade para compreender a realidade masculina das outras histórias. Desta vez, tive medo de não conseguir passar a mensagem com profundidade”, diz. Em seu último ato como porta-voz das prisões nacionais, Drauzio aprendeu tanto quanto vai ensinar.

EU-LÍRICO FEMININO O oncologista Drauzio Varella. Em seu terceiro livro sobre a prisão, ele envereda pelas complexas histórias das mulheres atrás das grades (Foto:  )
EU-LÍRICO FEMININO O oncologista Drauzio Varella. Em seu terceiro livro sobre a prisão, ele envereda pelas complexas histórias das mulheres atrás das grades (Foto: )


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