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sábado, 24 de junho de 2017

Dororidade

POR #AGORAÉQUESÃOELAS
Por Vilma Piedade*
 23/06/2017
Um conceito nunca está pronto, definitivo e imutável. Não está descolado de seu tempo e, portanto, não é estático. Pelo contrário: pressupõe movimento, crítica e transformação. Conceitos são circulares e, até para eles, como se diz, a fila anda – surgem significados inesperados, aparecem outros discursos, despontam novas reflexões. Nunca são simples ou isolados, como define a filosofia. Todo conceito carrega elementos que, por sua vez, remetem a outros conceitos, e assim sucessivamente, num movimento circular e múltiplo.
É a partir dessas noções de conceito que proponho um novo. Estou inaugurando o conceito de dororidade – e divido aqui a história dessa construção.
Dororidade, como se pode presumir, faz referência à palavra sororidade, um dos pilares do movimento feminista. Numa definição muito abreviada, podemos dizer que sororidade significa a união de mulheres em várias instâncias da vida, do âmbito privado ao ativismo público. Ela abarca outros tantos significados – empatia, acolhimento e respeito às diferentes vozes femininas, entre outros.
Mas, se existe a sororidade, qual é a finalidade de criar outro conceito? A sororidade já não ancora o feminismo? Será que, como mulheres feministas, o conceito de sororidade não nos basta?
Pois, de meu lugar de fala, respondo: não, não basta. Meu lugar de fala, que é sempre um lugar de pertencimento, é o de mulher preta. Ativista. Feminista. De axé. É também um lugar que foi de minhas ancestrais, marcado pelo racismo e pela ausência na História. Um lugar-ausência. E daqui eu digo que a sororidade une e irmana, mas não basta. Não para nós, mulheres pretas.
A sororidade parece não dar conta da nossa pretitude. Foi a partir dessa percepção que pensei em outra direção, num novo conceito que, apesar de “recém-nascido”, já carrega um fardo antigo, velho conhecido das mulheres: a dor – mas, neste caso, especificamente a dor que só pode ser sentida a depender da cor da pele. Quanto mais preta, mais racismo, mais dor.
É a dor o que parece unir a luta feminista. A dor da violência que sofremos no cotidiano, seja física, emocional, sexual, patrimonial, moral. Nós, mulheres pretas, ainda somos alvos de uma violência a mais: o racismo. E seu impacto é brutal, comprovado pelas estatísticas. Se o feminicídio de forma geral avança, as pretas são as que mais morrem. O último Atlas da Violência, divulgado há poucos dias, fez questão de destacar no documento: “Os dados guardam diferenças significativas se compararmos as mortes de mulheres negras e não negras”.
Em dez anos (de 2005 a 2015), o índice de homicídios de não pretas caiu 7,4%. Já entre as pretas, cresceu 22%. Outro número da mesma pesquisa: 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil em 2015 eram pretas. Diante das trágicas estatísticas, dessa dororidade histórica, precisamos praticar cada vez mais a sororidade. Fortalece a todas nós. Mulheres. Pretas. Brancas.
E se escrevo pretas (e não negras), eu o faço justamente para não alimentar a base sobre a qual se estrutura a opressão provocada pelo racismo. Aqui, estou falando do conceito de raça, uma construção ideológica fabricada pelo modelo capitalista branco que, por sua vez, alimenta o lugar de acúmulo, de dominação e de privilégios. O conceito de raça, enfim, estimula e retroalimenta o racismo – um “racismo à brasileira, cordial”, já disse Carlos Moore.
O caminho que percorro nessa construção conceitual me leva a entender que um conceito parece precisar do outro. Um contém o outro. Assim como o barulho contém o silêncio. Dororidade, pois, contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo racismo. E essa dor é preta.
Como escreve Angela Davis: “Raça, classe e gênero entrelaçados, juntos, criam diferentes tipos de opressão. Classe informa a raça; raça informa a classe”. Audre Lorde, por outro lado, defende que não há hierarquia de opressão. Mas, neste ponto, fico com Djamila Ribeiro. No prefácio do livro de Davis, ela afirma que, sim, há uma hierarquia de gênero no tocante a nós, mulheres, jovens e meninas pretas. Somos mais vulneráveis à violência sexual, ao feminicídio.
O machismo racista e classista inventou que somos mais gostosas, quentes, sensuais e lascivas. Daí para o abuso sexual, naturalizado desde a senzala, foi um pulo. Pulo de 129 anos, e passamos a liderar as estatísticas. Morremos mais nas garras desse machismo do que as mulheres brancas. Por isso, vivemos também mais a dor da perda – de filhos, filhas, amigos, jovens, todos pretos. Foi-se a Abolição, e a carne mais barata do mercado ainda é a preta.
Mas não há dor maior ou menor. Dororidade e sororidade não disputam. Um conceito precisa do outro. Porque dor não se mede. É de quem sente. Há dor. Dor dói e ponto. E a nossa dor é preta. Para ela, proponho dororidade.
*Vilma Piedade é professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira formada pela UFRJ com pós-graduação em Ciência da Literatura. É mulher Preta. Ativista. Feminista. De Axé. Integrante da RENAFRO. PartidA RJ. Articulação de Mulheres Brasileira (AMB). Revisora/Relatora da Conferência de Durban.

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